Hospitais podem recusar cuidados por razões religiosas?

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Sergio Rego

O caso da recusa de um hospital de São Paulo em oferecer a uma cliente a implantação de um Dispositivo Intrauterino (DIU), como método contraceptivo ganhou as páginas dos jornais de grande circulação.

O que nos cabe discutir aqui é se é razoável do ponto de vista ético tal recusa.

Para tal gostaria de convidá-lo a refletir comigo. Examinemos a opção de ser razoável. Então estaríamos admitindo que o hospital tem boas razões para se recusar a atender. Digo que o hospital se recusou a atender porque foi essa a proposta oferecida para a cliente: “procure outro lugar, aqui não”.

Assim, se considerarmos razoável essa opção, teremos que admitir como obrigatório que isso ficasse claro para todos os clientes: “só atenderemos pessoas que sejam concordantes com a doutrina da igreja católica”, para que não possam restar dúvidas e não se gerem expectativas infundadas para o cliente.

O Código do Direito do Consumidor garante como direito “a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade, tributos incidentes e preço, bem como sobre os riscos que apresentem”.

Extrapolando esta ideia para admitir, como Peter Singer, que a ideia de ação ética pressupõe o uso da razão e que para que uma ação seja considerada eticamente adequada é necessário ir além das preferencias e aversões pessoais, ou seja há que ter uma pretensão de universalidade, estaríamos admitindo que cada grupo religioso deva ter seu hospital para que todas as pessoas possam ter garantidos os direitos constitucionais à saúde. E à liberdade religiosa, como expresso em nossa Constituição Federal.

Creio que todos nós concordamos que não seria adequado do ponto de vista ético tal distinção de hospitais. Se um hospital abre as portas ao público, ele não deve apresentar um cardápio de grupos que podem e que não podem frequentá-lo, de acordo com sua religião.

Voltando ao nosso caso, intuitivamente creio que todos concordarão que a opção de a pessoa só ter tratamento em instituição que compartilhe uma mesma moralidade, um mesmo conjunto de valores e projetos de vida boa e feliz, é irracional em uma sociedade pluralista e democrática. Bem se esse for o caso, nossa segunda opção, de que não é razoável que haja hospital que trate só de uma religião, que razões teriam os hospitais para não oferecer o DIU como mecanismo de contracepção uma vez que o Estado brasileiro, através de seus mecanismos de regulação, o aprova para este fim.

Aqui, um ponto que pode ser discutido: Existiria alguma razão ética para que fosse proibido o uso do DIU como método. Sabemos que não há. Mesmo a acusação de ser um mecanismo abortivo já não é mais correta. O dispositivo atua impedindo a fecundação.

Restaria um outro ponto muito caro à bioética laica em sociedades democráticas que admitem e prezam a pluralidade moral. Quando defendemos a autonomia do paciente, como um princípio importante de sua relação com a instituição e os profissionais de saúde, não podemos admitir uma limitação das opções de tratamento às opções aceitas por uma determinada religião. Claro está que se assim admitimos estamos impondo uma determinada maneira de ver a vida e de nos comportarmos. E a liberdade, base estrutural de uma sociedade democrática, se esvai.

A imposição de uma determinada moralidade ao Outro não é uma questão de menor importância ou de fácil resolução. É muito difícil aceitar o Outro, especialmente quando o outro é tão diferente quanto aquele que não aceita os dogmas pelos quais se vive a vida.

E esse tem sido os maiores desafios da Bioética para profissionais de saúde, o da identificação das questões éticas relacionadas às tomadas de decisão em saúde e a aceitação, pelo profissional de saúde, dos vários projetos de vida boa e feliz que os mais variados grupos morais são capazes de defender para si.

Abdicar de impor ao Outro a sua concepção moral de vida boa e feliz não é trivial e demanda um esforço e formação profissional adequadas – daí a importância da Bioética na formação de profissionais de saúde e da ética aplicada aos mais variados campos da vida social.

Para concluir, e responder a pergunta do título, apresento um contexto/caso e uma pergunta para os leitores. O caso histórico foi colhido de um artigo onde Rego (1993), citando Araújo (1982), apresenta o “estatuto do Hospital dos Lázaros aprovados em 1776: “para assistir os enfermos, teria ‘um médico para fazer duas visitas por semana e um cirurgião para assisti-los continuamente’ e ‘haverá́ um capelão que deve assistir dentro dele, para acudir mais prontamente com os socorros espirituais aos miseráveis enfermos, e nenhum destes será recolhido ao hospital, sem que primeiro, por informações do Rev. Capelão, conste haver se confessado’”. De lá para os dias atuais muita coisa mudou. A promulgação da Constituição Federal de 1891 estabeleceu a divisão entre o Estado e a Igreja. O Estado e a sociedade brasileiros vêm ao longo desse tempo consolidando a opção pela laicidade da vida social comunitária, em que o respeito a diferentes concepções de vida boa e feliz é um princípio fundamental.

Isso posto, convido os leitores a refletir sobre a pergunta título e desenvolver seus argumentos.


Referências

SINGER, Peter. Ética prática. Trad. de Jefferson Luís Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

REGO, Sérgio. A medicalização do hospital no Brasil: Notas de estudo. Diretrizes Curriculares, Certificação e Contratualização de Hospitais de Ensino, 11. disponível em https://website.abem-educmed.org.br/wp-content/uploads/2019/09/CadernosABEM__Vol04.pdf#page=20\

ARAÚJO R. A assistência médica hospitalar no Rio de Janeiro no século XIX. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura; 1982.

Imagem gerada por Inteligência Artificial


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