“Você sabe o que é bioética?” Foi com essa pergunta que eu [Sergio Rego] comecei uma aula com estudantes de medicina do 4º. ano há alguns anos. Minha surpresa veio com a resposta que os alunos deram: não apenas conheciam o termo como haviam tido uma aula de bioética naquela mesma semana, ocasião em que haviam recebido um Manual de Bioética.
A razão de minha surpresa era o fato de que tinha a informação de que não havia ensino de bioética no currículo daquela faculdade e eu desconhecia igualmente a existência de algum manual de bioética. Pedi então aos estudantes que, se possível, trouxessem para a aula da semana seguinte o “Manual”, pois tinha desejo de conhecê-lo. Dito e feito. Na semana seguinte vários estudantes trouxeram o “Manual” quando tive a oportunidade de constatar que não se tratava de um manual de bioética, mas tão somente uma versão, impressa pelo Conselho Regional de Medicina local, do Código de Ética Médica.
Esta “confusão” não deve nos surpreender, já que não apenas a palavra “bioética” é um neologismo recente (início dos anos 1970), como em nosso país ela é ainda mais recente, já que apenas depois do fim do último período militar e com a promulgação da Constituição Brasileira de 1988, assuntos como direitos individuais e coletivos e ética puderam ser debatidos sem o receio que a ditadura impunha à maioria dos brasileiros.
Vamos explicar aqui nesse espaço algumas ideias que deixam muitos confusos, tanto pelos diferentes sentidos que as palavras podem ter quanto pela explicação dada, que muitas vezes é tão erudita que poucos são capazes de entender.
Estou me referindo primeiro à palavra “moral”. Observem que é uma palavra tão batida que é usada mesmo em gírias, como “dar moral a alguém”, “levar na moral”, “estar de moral baixo (ou alto)”. Essas expressões populares não têm diretamente o significado que vamos tratar nessa conversa.
O primeiro sentido que queremos destacar é o de moral como um conjunto de regras ou normas que regem uma sociedade, ou um segmento dela, e que são impostas aos seus membros para a garantia de uma convivência alinhada aos valores que ela afirma como os mais adequados ou mais corretos.
Em geral essas regras e normas estão presentes em um documento formal: como os chamados códigos de ética profissionais (que deveriam se chamar de códigos de moral profissional); os diferentes documentos no qual estão baseadas as diferentes religiões; e mesmo os códigos civil e criminal de um país, entre outras normativas que sempre trazem em seu corpo valores, de forma mais ou menos implícita, valores a serem protegidos.
Mas será que toda regra ou norma que exista em uma determinada sociedade representa sempre uma regra moral? Não! E vou mostrar algumas diferenças agora. Existem regras, por exemplo sobre como se referir a autoridades, como Vossa Excelência, Meritíssimo, ou Magnífico Reitor. Essas regras, que poderíamos chamar de regras de etiqueta, são convenções sociais, não regras morais.
Mas será que, por exemplo, se um professor entrasse em sala de aula para fazer o seu trabalho trajando apenas uma sunga ele estaria violando uma norma moral? Apesar de tantas religiões procurarem sempre moralizar a forma como as pessoas se vestem (por exemplo, o judaísmo, islamismo, cristianismo ortodoxo, rastafarianismo ou hinduísmo) essas orientações se aplicam àqueles que optam por seguir esta ou aquela orientação religiosa e seu código moral próprio.
Em sociedades que admitem diferentes religiões ou mesmo não ter religião, essas normas morais não podem se aplicar a todos. Muito bem, então quer dizer que um professor pode ir dar uma aula vestindo apenas uma sunga? Não. E por que não? Porque existem convenções sociais que regulam também o nosso comportamento em sociedade, mas que não pertencem ao que chamaremos agora de “campo da moral”. E o que está no campo da moral? Será que existe um consenso sobre isso?
De uma maneira geral, podemos dizer que está no campo da moral, ou seja, que pode ser objeto de uma reflexão ética, tudo aquilo que afeta o bem-estar ou provoca o sofrimento de humanos. Há, entretanto, aqueles que incluem no rol de suas preocupações todos os seres sencientes (ou seja, que possuam a capacidade de ter percepções conscientes do que lhes acontecem e do que os rodeiam, ou seja, a princípio, todos os animais).
Outros, por outro lado, incluem todos os seres vivos e mesmo a visão sistêmica da Terra como Gaia (palavra que vem da mitologia grega e que representa a Mãe Terra, mas que modernamente passou a representar a relação de interdependência e a necessidade da manutenção do equilíbrio entre todos os seres vivos e o planeta).
Assim, podemos perceber que nem todos os humanos têm a mesma compreensão do que deve ser objeto de suas preocupações morais. E, para que você possa reconhecer um problema moral que exige uma reflexão ética, você precisa incluir aquela pessoa/animal/sistema como objeto efetivo de sua preocupação, se o que se faz com elas é certo ou errado, bom ou mau, justo ou injusto e por aí vai.
E o que a Bioética tem a ver com isso? A bioética pode ser compreendida como o campo interdisciplinar (ou mesmo a disciplina), que se dedica a analisar os argumentos morais que apoiam ou contestam determinadas práticas humanas que afetam a qualidade de vida e o bem-estar dos humanos e não-humanos, preservando a qualidade dos seus ambientes. Além disso, a Bioética se volta para a tomada de decisões fundamentadas nas análises anteriores. Ou seja, a Bioética tem duas dimensões indissociáveis: uma descritiva/analítica e outra normativa, que proporá soluções para os problemas morais examinados.
O brasileiro Fermin Roland Schramm e o chileno Miguel Kottow defendem apropriadamente que é necessário incorporar uma outra dimensão, que tem sua origem no campo da saúde pública: que é a proteção de todo/as aquele/as que são mais vulnerado/as.
É claro que tudo isso também possibilita muito debate sobre o que é ser vulnerado/a, o que se deve/pode fazer nessas situações. Vimos assim que as visões da Bioética são múltiplas e precisam estar fundamentadas em argumentos e é exatamente isso que a Bioética propõe: a reflexão crítica sobre esses problemas morais, levando-se em consideração as circunstâncias envolvidas e não a mera afirmação de soluções pré-determinadas.
Por: Sergio Rego, Marisa Palácios, Dalmir Lopes e João Almeida.