Planejamento familiar: um direito e dever de todos!

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Equipe Editorial

Nota oficial da Sociedade Brasileira de Bioética (SBB)

SBB emite nota relativa à denúncia de paciente que não pôde efetivar seu direito ao Planejamento Familiar por meio da implantação do DIU em hospital paulista, que alegou motivos religiosos.

É com preocupação, e consciente de sua responsabilidade como principal instituição representativa da Bioética no Brasil, que a SBB vem a público manifestar sua posição acerca do caso amplamente noticiado na imprensa e nas redes sociais, relativo à denúncia de uma paciente que não pôde efetivar seu direito ao Planejamento Familiar por meio da implantação do DIU (dispositivo Intrauterino), em um hospital confessional do Estado de São Paulo, que justificou sua recusa afirmando que tal procedimento violaria preceitos religiosos da fé católica professada pela instituição.
 
Manifestações diversas e divergentes, baseadas, algumas delas, em posições exclusivamente pessoais, têm suscitado dúvidas e incertezas, o que pode gerar perdas e retrocessos importantes comprometedores dos Direitos Reprodutivos das Mulheres, tão duramente conquistados.
 
Nesse sentido, a SBB fundamenta sua posição a partir de preceitos bioéticos e jurídicos acerca do caso em concreto e do tema em geral, a seguir elencados:
 
1. O planejamento familiar é um direito garantido constitucionalmente, declarado e protegido por Lei, e previsto no sistema internacional de Direitos Humanos, ratificado e implementado pelo Brasil;
 
2. A Constituição Federal de 1988 relacionou o Planejamento Familiar como Direito Fundamental no art. 226, paragrafo 7.º;
 
3. Para melhor detalhar e garantir o conteúdo desse Direito Fundamental, o Brasil promulgou, em 1996, a Lei nº 9.263 denominada Lei do Planejamento Familiar, na qual está expressamente consignado que o Planejamento Familiar é “o conjunto de ações de regulação da fecundidade que garanta direitos iguais de constituição, limitação ou aumento da prole pela mulher, pelo homem ou pelo casal” (art. 2.º, caput);
 
4. O conceito de Planejamento Familiar, expresso na Lei, indica a estrita relação deste com o Sistema de Saúde;
 
5. Com o intento de reforçar a existência dessa relação direta entre Planejamento Familiar e o Sistema de Saúde, e para que ficasse evidente que não se tratava apenas de um direito a ser exercido no âmbito das entidades de saúde pública, a Lei ainda acrescenta que “as ações de planejamento familiar serão exercidas pelas instituições públicas e privadas, filantrópicas ou não” (art. 6.º, caput);
 
6. O DIU é dispositivo incluído entre os elencados pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) na Resolução Normativa nº 465/2021 como procedimento de Planejamento Familiar de Cobertura Obrigatória;
 
7. Antes mesmo de ser expressamente um Direito Fundamental declarado pela Constituição, o Brasil já se preocupava com a questão, tendo assinado diversos tratados internacionais de Direitos Humanos sobre o tema, em especial sobre direitos reprodutivos da mulher, dentre os quais podem ser indicados: o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (1966), a Convenção Americana de Direitos Humanos (1969), a Convenção da ONU sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Mulheres (1979) e a Convenção Americana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, também conhecida como Convenção de Belém do Pará (1994);
 
8. Independentemente de sua natureza pública, privada, filantrópica ou confessional as instituições de saúde possuem o dever de obediência à Constituição e às leis do país;
 
9. A mantenedora do hospital indicado na denúncia em tela é de matriz confessional católica, inspirada por São Camilo de Lellis, com importante atuação nos setores de saúde e educacional;
 
10. A SBB registra seu profundo respeito e reconhecimento às instituições confessionais que exercem um trabalho incansável, admirável e louvável na atenção de pacientes em profunda vulnerabilidade;
 
11. A SBB reconhece que a espiritualidade constitui importante face dos cuidados em saúde e que esse referencial bioético foi muito bem ensinado pelos saudosos bioeticistas e professores camilianos Padre Leo Pessini e Willian Saad Hossne, bem como o professor Marcio Fabri dos Anjos, ainda hoje atuante na Sociedade Brasileira de Bioética;
 
12. Admite, entretanto, que, ainda que a espiritualidade se encontre no cerne da religiosidade, não se confunde com ela;
 
13. Nesse sentido, a religiosidade que é de foro individual não pode servir de argumento para a restrição de Direitos Fundamentais de forma não tolerável pelo Estado de Direito, mesmo quando esta religiosidade é assumida institucionalmente;
 
14. A autonomia privada permite que entidades realizem muitas coisas. A mantenedora do hospital denunciado, poderia, por exemplo, optar por não criar nenhum hospital ou criar um hospital de especialidades, a exemplo de um Hospital do Coração ou Hospital do Câncer. Todavia, quando opta por criar um Hospital com atenção ampliada à saúde, está, também, escolhendo lidar com toda a regulação sanitária correspondente a essa modalidade de atenção à saúde no Brasil;
 
15. Diferentemente do Planejamento Familiar, que está expressamente garantido com o Direito Fundamental, a instituição poderia, por exemplo, recusar-se a realizar um procedimento estético em suas dependências, já que não existe um Direito Fundamental à realização de procedimentos estéticos;
 
16. No que diz respeito à fundamentação da recusa com base na autonomia, a SBB registra que a autonomia de profissionais de saúde à objeção de consciência é um direito personalíssimo dos profissionais e não de instituições;
 
17. A laicidade é um princípio constitucional que deve ser observado neste e em qualquer outro caso que se submeta a análise, considerando que a saúde é um Direito Fundamental Público por natureza, ainda que exercido por entidade privada;
 
Com base nesses considerandos e, no melhor entendimento bioético e jurídico, a SBB se posiciona no sentido de que:
 
1) A Constituição e o ordenamento jurídico brasileiro garantem formal e expressamente o dever de hospitais, da rede pública ou suplementar, de garantir a efetivação do Direito Fundamental ao Planejamento Familiar;
 
2) O Estado Democrático de Direito não pode suportar retrocessos nas conquistas das mulheres, especialmente no que diz respeito aos Direitos Reprodutivos;
 
3) Estabelecimentos de saúde não podem, com base em argumentos religiosos, se recusarem a realizar procedimentos que efetivam direitos fundamentais constitucionalmente garantidos e protegidos por lei;
 
4) A justificativa de recusa de realização do procedimento com base no fundamento da autonomia privada não se enquadra no presente caso, tendo em vista as razões já expostas;
 
5) Nenhuma normativa interna de hospitais pode limitar a autonomia de profissionais de saúde no cumprimento de preceitos constitucionais fundamentais. Nesse sentido, os médicos do hospital denunciado não podem ser impedidos de realizar a implantação do DIU ou de qualquer outro procedimento garantido em lei em razão de limitação imposta por regramento interno do hospital que viola Direitos Fundamentais;
 
6) A nota emitida  pelo hospital como sendo diretriz das entidades camilianas na qual encontra-se a informação de que “… em todas as unidades a diretriz é não realizar procedimentos contraceptivos em homens ou mulheres, exceto em casos de riscos à saúde, em alinhamento ao que é preconizado às instituições confessionais católicas” é preocupante tendo em vista as violações  que podem estar ocorrendo em todos as unidades da federação  nas quais a entidade possui ou administra serviços de saúde, alguns, inclusive, com atendimentos ao SUS;  
 
7) A diretriz institucional desconsidera a laicidade e amplia os riscos de violações considerando que, como instituição de ensino, com cursos na área da saúde, a imposição de crenças e valores morais religiosos pode comprometer as conquistas alcançadas e a excelência da formação profissional;
 
8) A manifestação da instituição constitui ainda um risco à Saúde Coletiva brasileira;
 
Nesse sentido, a Sociedade Brasileira de Bioética manifesta sua posição firme na defesa e na garantia de todos os Direitos Humanos Fundamentais, dos Direitos Reprodutivos das Mulheres e, nesse caso em especial, do Direito ao Planejamento Familiar.
 
Diante dos fatos constatados recomenda que o Estado brasileiro, investigue, se manifeste e tome as medidas necessárias e urgentes na defesa dos Direitos das mulheres ao Planejamento Familiar.

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