Diplomas legais costumam suceder aos costumes da sociedade com algum delay.
No que se refere ao respeito aos animais há muita confusão pelo mundo, até porque os costumes são distintos, e muito. Não nos cabe discutir o que ocorre em outras terras, mas podemos nos deter ao que fazemos por aqui.
Cada dia os animais de companhia participam mais do convívio com várias espécies no ambiente doméstico brasileiro, tanto que nos referimos sempre a famílias multiespécie. Dentro desse contexto, respeito e cuidado são valores que devem ser inegociáveis.
Sabemos que muitos responsáveis por animais de companhia não se comportam de maneira a merecerem ser chamados assim. Seja como for, profissionais da saúde ou pesquisadores devem se comportar de forma a atender aos princípios da bioética.
No âmbito da pesquisa envolvendo espécies de animais domésticos mantidos por suas famílias, no Brasil há que se atender às regras publicadas pelo poder público: Lei de Crimes Ambientais (Lei Nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998), Lei nº 11.794, de 8 de outubro de 2008 e Resolução Normativa nº 22 de 25 de junho de 2015 e Resolução Normativa nº 25, de 29 de setembro de 2015. De forma mais direta, não podemos submeter animais a maus tratos e precisamos respeitar as regras brasileiras.
Entretanto, como o nome diz, o Concea tem a responsabilidade de controlar a experimentação animal. Quem, segundo o regramento, deve zelar pela ética na utilização de animais em atividades de ensino ou de pesquisa são as Comissões de Ética no Uso de Animais (CEUAs) locais. Assim, para que uma atividade de ensino ou de pesquisa seja desenvolvida legalmente deve obter autorização da CEUA pertinente antes de ser iniciada. Além disso deverá atender a todos os detalhes autorizados pela CEUA. Dessa forma, quem deve garantir tratamento digno aos animais de cada atividade é a CEUA.
Portanto, quando falamos de uma pesquisa que envolva animais e seus responsáveis, é a CEUA quem deve certificar-se de que:
- Os responsáveis pelos animais a serem utilizados sejam esclarecidos sobre a atividade e que formalmente concordem com a inclusão dos animais;
- As atividades propostas não prejudicarão o animal incluído;
- Algum benefício resultará da inclusão dos animais e; iv) os animais incluídos terão tratamento justo e respeitoso.
O que dizer de uma situação em que um grupo de animais recebe tratamento curativo ou preventivo e o outro não, no decurso de uma pesquisa em Medicina Veterinária, mesmo tratando-se de uma condição plenamente tratável ou evitável?
Em se tratando de seres humanos, o Brasil respondeu claramente a esse tipo de questão ao deixar de ser signatário da Declaração de Hensinque em 2013, quando o duplo padrão foi admitido. Isto é, situação em que alguns participantes poderão ser deixados à sua própria sorte, sem tratamento curativo ou prevenção. Situação que os Comitês de Ética em Pesquisa (CEP) não aceitam no Brasil.
Por que as CEUAs não impedem esse tipo de estudo em animais? Muitas vezes considerados membros da família por seus tutores, esses animais estão mais expostos a agravos a saúde, na medida em que os tratamentos disponíveis foram omitidos. Há também situações em que os tutores foram informados de que não deveriam promover nenhuma alteração no manejo animal porque ele estariam participando de um protocolo de pesquisa. E, assim assinam o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), sem nenhum esclarecimento.
Qual o benefício para esse animal? Qual o benefício para esse tutor que concordou em participar com seu pet da pesquisa? Qual o benefício para a sociedade, uma vez que, assim como ocorre em seres humanos, a pesquisa poderia ser realizada com outra abordagem e com os devidos cuidados éticos?
Em alguns casos, há uma questão de saúde pública envolvida e ignorar isso, permitindo que animais infectados permaneçam sem tratamento é uma questão que envolve a ética com toda uma comunidade multiespécie.
Há que se ter em conta que o animal não é um mero objeto, não é apenas um modelo experimental, mas é alguém que mantém relações afetivas com uma família e vice-versa, alguém que interage na sociedade e precisa estar com sua condição sanitária compatível com a vida em sociedade e com o seu bem-estar.
Profissionais de saúde e pesquisadores precisam ter uma visão integrada sobre saúde, de modo a considerem os vínculos entre saúde humana, saúde animal e saúde ambiental, de tal forma que “saúde única” e ética, não sejam apenas conceitos, mas uma perspectiva presente nas decisões individuais e nas políticas públicas.
Como as CEUAs são locais, sofrem pressões e, algumas vezes, seus membros podem ser humilhados de forma acachapante. Dessa forma, não raramente, aprovam propostas inadequadas que legitimam o estudo, tornando-o legal.
Fica então o gosto amargo de que quando uma CEUA autoriza uma proposta que não atende aos princípios da bioética, o respeito e o cuidado com a comunidade multiespécie são negligenciados e,o sofrimento desnecessário dos animais uma consequência.