A complexidade das situações que envolvem o trabalho escravo na contemporaneidade, consideradas em suas múltiplas dimensões sociais, econômicas e culturais, vem se tornando nos últimos anos um objeto de interesse também nas agendas de saúde pública, muito impactada pela falta de investimento no período recente, porém, ainda pouco discutidas em profundidade.
No cerne da questão, é evidente que a temática do trabalho forçado hoje transcende as tradicionais fronteiras jurídicas e de segurança pública, ligada aos atos previstos nas convenções internacionais do trabalho, Código Penal e Leis do Trabalho, sendo uma problemática entendida como multideterminada, que afeta todas as sociedades, sobretudo, suas condicionantes e seus determinantes ambientais e de saúde.
Atualmente, a ausência de políticas públicas de saúde direcionadas ao combate ao trabalho análogo à escravidão representa uma lacuna, tanto no contexto brasileiro quanto a nível mundial. Afinal, embora tenha havido avanços significativos na conscientização e repressão às práticas escravagistas, a implementação de medidas voltadas ao cuidado às vítimas são incipientes, em especial, pela falta de qualificação para enfrentamento ao problema, que perpetua a vulnerabilidade de trabalhadores e contribui para manutenção da violência estrutural que gera desigualdades.
Neste sentido, a bioética como uma das principais disciplinas da área da saúde, está, sobretudo, interessada em atuar para o desenvolvimento da função social das ciências da saúde, configurando-se, assim, como um segmento fundamental para o estabelecimento do pacto entre a sociedade, cientistas, profissionais de saúde e governos (OLIVEIRA, 1995). É vista como ferramenta que oferece base indispensável para a discussão qualificada sobre condições de trabalho análogas à escravidão na contemporaneidade das políticas públicas, bem como, na incorporação da questão na constituição da clínica e no processo de trabalho dos profissionais de saúde.
Normalmente, pensamos que a bioética se apresenta como um campo vital e intrinsecamente ligado às complexidades inerentes apenas ao avanço científico e tecnológico no âmbito das ciências da vida. Porém, mais do que uma disciplina acadêmica e do campo de conhecimento científico da saúde, é importante ressaltar que a bioética se vincula à discussão de paradigmas sociais, baseada no princípio da defesa da dignidade humana. Afinal, em um mundo onde as fronteiras entre moral, ética e direitos por vezes entram em conflito, a bioética atua na busca de equilíbrio entre as ações individuais e coletivas, interessada nas implicações éticas e condições de vida. E, desta forma, está inserida junto a outros diversos campos acadêmicos e de ativismo político que, por vezes, se colocam, ou deveriam se colocar mais, nestes debates das desigualdades na saúde.
A violência estrutural opera em níveis amplos e muitas vezes invisíveis ou normalizados pelas instituições, associado aos padrões históricos e sistemas sociais, políticos e econômicos que causam danos persistentes a saúde de certos grupos de pessoas com base em sua posição na estrutura social, das formas e tipos de violências enraizadas nas instituições, políticas e práticas que perpetuam as desigualdades sistemáticas nas sociedades. Com exemplos que incluem diversos tipos de saber e poder, como políticas discriminatórias, desigualdades salariais, acesso desigual a recursos e oportunidades de cuidado à saúde (FARMER, 2005). A discussão destas questões na bioética ajuda a pensar e agir sobre como certas estruturas e sistemas podem perpetuar condições desiguais no acesso à saúde entre grupos específicos. Considerando em suas análises aspectos históricos, sociais, éticos e biomédicos na compreensão do processo saúde-doença.
Discutir a relação entre bioética e racismo a partir de uma perspectiva interseccional (HOOKS, 2014) está ligado à busca de alternativas práticas em meio às dimensões políticas, sociais, biológicas e outras, que interferem na produção do cotidiano de vida das pessoas. Que, neste sentido, acaba por abarcar a produção de subjetividades nos modos de cuidado à saúde em nossas sociedades, atravessados por concepções produzidas nas formas de racismos presentes nas relações vivenciadas no dia a dia.
O racismo estrutural (ALMEIDA, 2020) é um conceito originado nos estudos das relações sociais, mas também, discutido por outras áreas como a antropologia, direito, saúde, ou ainda, na bioética, em diálogo com estes e outros conhecimentos. Visto como um dispositivo que só pode existir em uma estrutura social que busca identificar grupos de seres, e que os diferencia por meio de relações de poder inseridas histórico e socialmente, as quais produzem subjetividades marcadas, sobretudo, pelas diferentes determinações e compreensões sobre a natureza da vida humana.
A violência estrutural na questão do cuidado à saúde às vítimas de situações de trabalho análogo à escravidão é uma questão enraizada em desigualdades socioeconômicas e políticas, que, pela ausência, cria um ambiente propício à exploração laboral de determinados grupos, impactando negativamente a saúde dos trabalhadores mais vulneráveis. A marginalização sistemática desta temática é determinada justamente pelo seu direcionamento aos grupos descriminados na sociedade, sobretudo vinculada a discriminações raciais e socioeconômicas estruturais, que não apenas perpetua as condições adversas de trabalho a determinadas pessoas, mas se traduz em disparidades significativas nas formas de acesso a cuidados de saúde adequados as suas demandas.
No Brasil, os trabalhadores resgatados são majoritariamente migrantes que deixaram suas residências em busca de melhores condições de vida e sustento. Destes, 95% são homens, entre a faixa de 18 a 44 anos, 53% são negros (entre autodeclarados pardos e negros) e 72% têm baixa escolaridade (33% de analfabetos), (REPÓRTER BRASIL, 2021).
A relação entre bioética, condições de trabalho análogas à escravidão e violências estruturais evidencia a necessidade urgente de um maior investimento em políticas públicas de saúde alinhadas ao combate dessas situações na sociedade. Abordando os desafios bioéticos atuais no enfrentamento das raízes da exploração, a causa das causas das disparidades, e suas estruturas de perpetuação das desigualdades na saúde.
Referências
- MÁXIMO, W. Brasil resgatou 3,1 mil trabalhadores escravizados em 2023: Apesar de falta de fiscais, essa é a maior marca anual desde 2009. Agência Brasil, 03.01.2024.
- OLIVEIRA, F. Feminismo, Luta Anti-racista e Bioética. Cadernos pagu (5) 1995: pp. 73-107.
- FARMER, P. An Anthropology of Structural Violence. Sidney W. Mintz Lecture. 2001.
- HOOKS, Bell. Eu não sou uma mulher. Mulheres negras e feminismo. Plataforma Gueto, 2014.
- ALMEIDA, S. Racismo Estrutural. Feminismos Plurais. Editora Jandaíra. 2020.
- REPÓRTER BRASIL. Panorama do trabalho escravo no mundo foi apresentado em seminário do Pacto. 2011.
Bacharelado em Psicologia pela Universidade da Amazônia. Especialista em Saúde Mental – Programa de Residência Multiprofissional em Atenção à Saúde Mental da Universidade do Estado do Pará; e Curso de Especialização em Saúde Mental e Atenção Psicossocial pela Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca na Fundação Oswaldo Cruz. Mestre em Psicologia pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Pará. Atualmente, é doutorando no Programa de Pós-Graduação em Bioética, Ética Aplicada e Saúde Coletiva na Universidade Federal Fluminense. Tem interesse nas áreas temáticas: Redes e Cuidados à Saúde, Bioética, Saúde Mental, Saúde Indígena, Micropolítica e Subjetividade. Integrante da Comissão de Bioética e Racismo da SBB-Rio.