O transplante de órgãos representa hoje a única opção terapêutica viável para pacientes com falência terminal de diversos órgãos vitais. No entanto, a oferta de órgãos a partir de doadores humanos atende a menos de 10% da demanda global, criando uma discrepância alarmante entre a necessidade e a disponibilidade. Essa escassez crítica de órgãos não apenas coloca em risco a vida de pacientes nas listas de espera, mas também incita a busca por soluções alternativas.
Nesse contexto de necessidade e urgência, tem-se investido em áreas emergentes promissoras, como a engenharia de tecidos, a medicina regenerativa e a bioimpressão de órgãos. Paralelamente, seguem as investigações iniciadas no ano de 1905 sobre a viabilidade em se usar órgãos de animais não-humanos em transplantes em humanos, técnica conhecida como xenotransplante.
O progresso científico atual nesta área, por vezes financiado com recursos públicos, avança a passos largos, enquanto a discussão ética, nas raras ocasiões em que ocorre, frequentemente negligencia questões importantes, ou as aborda de forma superficial. Este é o caso do debate sobre a moralidade em se impor sofrimento e morte a animais não-humanos sencientes para satisfazer a necessidade humana de órgãos para transplante.
De fato, a questão da senciência em animais não-humanos é central para esse debate. Diversos estudos, sendo o mais proeminente a Declaração de Cambridge sobre a Consciência em Animais Humanos e Não-Humanos, destacam que os substratos neurobiológicos da consciência, anteriormente considerados exclusivos dos seres humanos, são partilhados com uma ampla variedade de animais de outras espécies. Com base em critérios fisiológicos, comportamentais e evolutivos, hoje sabemos que os vertebrados e uma grande variedade de invertebrados compartilham conosco a capacidade de senciência.
Isso significa que a capacidade de sentir dor, prazer e uma gama de experiências subjetivas faz com que esses seres tenham interesses próprios, que podem ser significativamente impactados pelas ações humanas. Por “interesse” me refiro ao que pode impactar o bem-estar ou qualidade de vida de um indivíduo. Se determinada ação potencializa o bem-estar, ela está alinhada ao interesse do ser; se prejudica, contraria seu interesse.
Esta perspectiva não só desafia nossa compreensão tradicional da consciência, mas também exige de nós uma reflexão crítica sobre o escopo e os limites da ciência. Ao reconhecer indivíduos de outras espécies como seres sencientes, estamos moralmente compelidos a considerar, de forma séria, justa e imparcial, seus interesses na mesma medida em que consideramos interesses semelhantes de seres humanos.
Isso exige uma reconsideração das práticas que os utilizam como meros recursos para fins humanos. Esta é a perspectiva enfaticamente reforçada pela Declaração de Montreal sobre a Exploração Animal, que postula ser moralmente inaceitável a redução de animais à condição de coisas, objetos ou mercadorias.
Isso coloca em xeque não apenas nossas práticas médicas fundamentadas na exploração animal, mas os alicerces de nossos valores morais. Consequentemente, o dilema ético inerente aos xenotransplantes, que se estabelece no interstício entre a preservação e prolongamento da vida humana e o respeito pela vida e bem-estar do animal não-humano, exige uma abordagem que ultrapasse a simples avaliação dos benefícios ou das necessidades humanas. Neste debate, as evidências atuais não podem mais ser ignoradas.
Frequentemente, observa-se uma inclinação para ancorar a legitimidade dos xenotransplantes em práticas preexistentes de exploração animal, ou apoiando-se na necessidade crescente de órgãos para transplante, na possibilidade de que salvará vidas humanas, ou mesmo com base nos avanços científicos relacionados à técnica.
Entretanto, todas estas justificativas incorrem em um mesmo erro, pois conferem um maior peso e privilegiam equivocadamente os interesses e objetivos humanos, desconsiderando os interesses fundamentais dos animais a terem sua vida e integridade física e psicológica preservados. Defendem, portanto, o especismo antropocêntrico, isto é, o ato de conferir um tratamento desfavorável injusto aos animais não-humanos.
Enquanto em alguns experimentos, órgãos de porcos modificados geneticamente são transplantados em humanos, em outros tipos de experimentos, órgãos de animais de várias espécies são transplantados em outros animais não-humanos, incluindo primatas. Os animais que são utilizados como receptores de órgãos são submetidos a procedimentos extremamente invasivos que causam sério sofrimento e, ao final, são mortos para terem os órgãos estudados. Já os animais que terão os órgãos extraídos, não apenas são mortos, como também sofrem, física e psicologicamente, devido às condições exigidas para garantir que os órgãos permaneçam livres de patógenos.
Portanto, se levamos a sério a ideia de que todos os seres sencientes não são meros instrumentos ou recursos a serem explorados, mas seres com suas próprias experiências e interesses subjetivos, a premissa de que devemos evitar causar sofrimento e morte porque o sofrimento é, em sua essência, algo negativo e porque a morte representa uma perda significativa e irrecuperável, implica que a distinção entre seres sencientes humanos e não-humanos não deve ter lugar na hora de considerar os seus interesses.
A morte não somente encerra a existência do ser, mas também o priva de uma multiplicidade de experiências futuras potencialmente positivas. O reconhecimento desse dano implica uma obrigação moral de reavaliar e refletir profundamente sobre nossas práticas e decisões que afetam outros seres sencientes, incluindo seu emprego em procedimentos como o xenotransplante.
Embora a demanda por órgãos para transplantes seja crítica, e muitos pacientes enfrentem a morte na fila de espera, isso não implica automaticamente que o xenotransplante esteja justificado. A existência dessa demanda é indiscutível, mas a estratégia que escolhemos para enfrentar essa crise deve ser reflexo de nossas decisões morais. A ciência e a tecnologia devem ser informadas não apenas por considerações técnicas e de viabilidade, mas também, e principalmente, por uma consideração ética profunda das consequências de tais ações sobre o bem-estar de todos os seres afetados.
Isso exige uma reavaliação de nossas práticas envolvendo animais não-humanos sencientes, uma revisão do paradigma científico que realizou uma divisão artificial entre humanos e animais, estarmos dispostos a explorar apenas alternativas que respeitem todos os seres sencientes envolvidos, e a consciência de que embora a busca por soluções para a falta de órgãos disponíveis para transplantes seja uma prioridade, também existem limites éticos para o que podemos oferecer aos pacientes.
Graduado em Análise e Desenvolvimento de Sistemas pela Universidade de Franca (2015); e graduado (licenciatura e bacharelado – 2019) e Mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Uberlândia (2023). Possui especialização em Ciências da Religião pela Faculdade Famart (2020), e especialização em Direito Animal pelo Centro Universitário Internacional UNINTER (2022). É fundador, coordenador e pesquisador do Grupo de Pesquisa, Ensino e Extensão em Ética Animal da Universidade Federal de Uberlândia (UFU/CNPq). Atualmente, é doutorando em Filosofia (UFU).