2024, O ano do ‘Homo virtualis’

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João Almeida

Parece que estamos cada vez mais vivenciando uma virtualização da humanidade. Cada vez mais vivemos em função de likes, muito além dos primitivos youtubers, hoje criamos uma geração de “virtual influencers” que estão por toda parte, do Instagram ao TikTok, nos dizendo o que vestir, que maquiagem utilizar, onde e o quê comer. Parece que a barreira entre o que é privado e o que é público em nossas vidas não existe mais.

Restaurantes, lojas, exposições, já contam com a necessidade de construir espaços “Instagramáveis” para que as pessoas possam virtualizar  as suas vidas “reais”. Pessoas postam os seus ideais de vida e de felicidade em um mundo perfeito, onde tudo é sorriso e realizações. Hoje já temos os filtros de imagem, e se alguém posta uma foto fica difícil dizer o quanto daquela foto é a pessoa, o quanto é imaginação virtual, o que pode levar até a alguns sustos em encontros ao vivo…

O filósofo Zygmunt Bauman descreve essa sociedade como líquida, principalmente no que se refere aos relacionamentos, onde buscamos sempre uma perfeição ditada pelo virtual, fictícia, imagética, superficial, fragmentada. E parece que essa virtualização caminha a passos mais largos do que Bauman previa, não só com a virtualização dos seres humanos reais, mas com a criação de seres supra humanos, como é o caso da “fitness influencer” Aitana Lopez.

Aitana tem quase 250.000 seguidores, mora na Espanha, comemorou o ano novo no Sacher Hotel , tomou café no Café Mozart, em Viena, é esportista, gamer, promove produtos de beleza e suplementos alimentares e vende suas fotos sensuais no site Fanvue. O único senão é que Aitana não existe no mundo real. Sua imagem foi criada por um aplicativo de Inteligência Artificial e é gerenciada pela “The Clueless AI”, uma agência de modelos de IA.

Consideramos que uma agência de modelos de IA hoje em dia seja mais relacionada a um grupo de designers e especialistas em publicidade que criem imagens hiper-realistas de seres humanos utilizando inteligência artificial e que gerenciem as suas personalidades fictícias para fins comerciais. Mas os desdobramentos disso são de certa forma assustadores. Podemos começar com o fato de uma pessoa que só existe no mundo virtual ter uma existência praticamente indistinguível de tatos outros seres humanos, ganhar dinheiro com a venda de produtos, com a própria imagem, formar opiniões.

Será que não deveria haver limites éticos claros que pelo menos nos alertassem sobre o que é e o que não é real? E a próxima pergunta com certeza é: isso importa? Se já vivemos em um mundo virtualizado, criado por pessoas reais que mostram uma “realidade ideal” criada no mundo virtual, a substituição desses humanos virtuais por modelos de IA que simulam modelos humanos fará realmente alguma diferença?

A questão parece estar na verdade no que nós buscamos na rede, e não naquilo que ela nos oferece. Buscamos a perfeição individualizada, e parece que além do modelo de Bauman, de buscarmos perfeições efêmeras, vamos poder construir (ou encomendar) os nossos próprios de modelos de seres humanos perfeitos, para nos relacionarmos, seguirmos, idolatrarmos.

E se hoje a IA constrói apenas simulações de imagens, amanhã (ou daqui a alguns instantes) poderemos ter IAs generativas com personalidades programadas gerando conteúdo e agindo de forma independente. Novos humanos. Serão eles ou nós os novo Homo virtualis? Ou não fará diferença?

Parece que ao invés da sociedade liquida de Bauman estamos cada vez mais próximos de fugir de uma vida real e construirmos uma vida ideal, perene, porém virtual. Poderemos criar avatares de nós mesmos, que terão corpos perfeitos, viverão em lugares perfeitos, se relacionarão com pessoas perfeitas,  geradas de acordo com os nossos gostos, com personalidades moldadas por engenharia de prompts. E o que restará de nossa essência humana?

Continuaremos a sermos humanos, vivendo em um mundo que cada vez mais é autogerado, ou seja, criado por nós mesmos. Será que vamos perder a noção do social, do coletivo, voltados apenas para um individualismo centrado em nosso próprio ego?

O filósofo alemão Hans Jonas, em seu livro “princípio responsabilidade” fala que se uma tecnologia está disponível, ela fatalmente será utilizada. Faz parte da essência de nossa espécie criar tecnologia e utilizá-la para modificar o nosso ambiente, e consequentemente o nosso modo de vida. Foi assim com a máquina a vapor, a eletricidade, a internet. E tecnologias são acumulativas, ou seja, uma coisa leva à outra. As Ias generativas já são uma realidade que se sobrepõe à internet e às mídias sociais.

Temos várias vantagens que facilitam as nossas vidas, desde a criação de ferramentas de pesquisa científica mais eficientes, carros que não necessitam de motorista, automação industrial mais eficiente, como as negativas, como as fake News, deepfakes e disseminação de correntes de ódio e discriminação pelas redes sociais. Que haverá uso e consequências para todas essas ferramentas é algo inevitável. Como nós vamos utilizá-las, para criar um mundo realmente melhor para todos ou nos alienarmos da nossa própria essência, é a grande questão que forçosamente teremos que resolver…


Imagem gerada por Inteligência Artificial

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