Sabor do futuro: carne cultivada e a bioética da alimentação

Foto do autor
Gracielle Santiago

Estamos diante de um momento histórico sem precedentes, descrito pela Organização das Nações Unidas (ONU) e divulgado pelo Painel Brasileiro de mudanças climáticas (pbmc) como a grande catástrofe ambiental, contando com um preocupante cenário de mudanças climáticas, degradação ambiental e crescente vulnerabilidade socioeconômica.

De acordo com a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura – FAO, até 2050 a população mundial poderá chegar a 10 bilhões de pessoas, enquanto a demanda por carne tende a subir em aproximadamente 70%, necessitando de alternativas alimentares sustentáveis e economicamente éticas,garantindo assim, a sobrevivência das atuais e futuras gerações.

Nesse sentido, a carne cultivada, também descrita como carne celular e carne sem abate, trata-se de uma aplicação biotecnológica disruptiva e sustentável capaz de produzir carne genuína sem a necessidade de abater animais e com menor uso de água, terra e recursos agrícolas

Como fazer

Para produzir carne cultivada é preciso coletar células musculares de animais como bovinos, suínos e aves (1), selecioná-la se condicioná-la sem biorreatores (semelhantes a fermentadores de cerveja) para multiplicação e diferenciação, em meio de cultura composto por soro fetal bovino (ou alternativo) e diversos nutrientes como aminoácidos, glicose, minerais e vitaminas (2), para obtenção da carne em até 8 semanas(3), ao contrário do animal vivo que pode levar anos para estar pronto ao abate. Conforme figura abaixo*.

C:\Users\grdeu\OneDrive\Imagens\Capturas de tela\Captura de tela 2024-03-15 232857.png

O soro bovino ou FBS, do inglês “fetal bovine serum” é necessário à adesão e desenvolvimento celular, todavia, carrega entraves bioéticas que sugerem urgente substituição por fontes não animais, por se tratar de um composto obtido a partir do sangue de fetos bovinos, com elevado custo, variabilidade indesejada entre lotes e aumento da demanda. Entretanto, diversos pesquisadores vêm desenvolvendo substituições viáveis parciais ou totais ao FBS (CHELLADURAI ET. AL, 2021). Esse é um dos principais entraves bioéticos à questão da implementação da carne cultivada, pois enquanto não for solucionado, o processo continua sendo associado à matança de animais.

Carne cultivada e bioética

Desde 2013, quando o primeiro bife de hambúrguer foi produzido pelo farmacologista e professor holandês Mark Post da Universidade de Maastricht e amplamente divulgado pela mídia, muito tem se discutido sobre a responsabilidade humana em buscar alternativas sustentáveis para suprir as necessidades de consumo, mitigar os impactos ambientais e o sofrimento animal.

Hans Jonas, filósofo alemão e defensor da ética da responsabilidade, enfatiza em sua obra “O Princípio Responsabilidade – Ensaio de uma ética para a Civilização tecnológica” a importância de nossa atuação presente na sobrevivência das gerações futuras, o que se torna relevante se pensarmos no impacto que a criação de animais para abate tem na geração de gases de efeito estufa e no consumo de água potável, elementos que cada vez mais se tornam críticos para a sobrevivência do planeta. Essas considerações se alinham com a visão do filósofo ambientalista norte americano Aldo Leopold, antecessor e pioneiro na ética ambiental, que defendia a necessidade de uma relação ética entre o ser humano e a natureza. Para o médico e bioeticista norte americano, Van Rensselaer Potter, criador do termo “bioética” como a ética da vida, existe a necessidade de uma ética que comporte e respeite todas as formas de vida, a fim de que possamos garantir a sobrevivência da humanidade e da vida como a conhecemos em nosso planeta.

Peter Singer, filósofo ético e defensor dos direitos dos animais, por outro lado, sugere considerar o sofrimento animal em nossas escolhas alimentares. Para Singer e conforme exposto na Declaração sobre a Consciência Animal de Cambridge de 2012, os animais não humanos são dotados de “consciência”, ampliando-se o conceito anteriormente abordado como “senciência”. David B. Edelman, um dos neurocientistas signatários da declaração, consciência é a “capacidade de perceber um cenário integrado e mantê-lo em sua memória”.Embora de maneira diferente à percepção humana, os animais se percebem inseridos no meio em que vivem, expressando sentimentos como alegria e medo,e buscam pela autopreservação, amparados por substratos neurológicos. Dessa forma, o desenvolvimento do consumo da carne celular também atenderia a pressupostos bioéticos ao diminuir o sofrimento dos animais tanto quanto à criação confinada quanto ao abate de animais, que não seriam mais necessários.

No Brasil, em pesquisa sobre a aceitação da carne celular, Valente e colaboradores da Universidade Federal do Paraná demonstraram que a maior parte dos entrevistados estão abertos ao consumo, e embora pessoas que não consomem carne como vegetarianos e veganos tenham exibido menor interesse, segundo a pesquisa a implantação dessa tecnologia poderia ser uma alternativa viável ao consumo de carne derivada do abate animal.

Assim, essa carne inovadora, sustentável e ética possui potencial mercadológico como as proteínas vegetais (já comercializadas e bem aceitas) para conviver no mercado de proteínas, demonstrando que um tipo de proteína não excluirá a outra. Nesse sentido, não é prevista a substituição da carne por abate pela nova proteína e sim a criação de oportunidade de novos mercados, oferta de mais postos de trabalho, ampliação de campos de pesquisa e capacitação de novos profissionais em toda a cadeia logística, desde a fábrica até chegar à mesa das pessoas.

A jornada em direção a um futuro alimentar sustentável é inseparável da responsabilidade ética, do respeito à vida e da conscientização cultural, moldando caminhos que honrem não apenas nossa nutrição, mas também nossas responsabilidades éticas para com o planeta e todas as formas de vida.

Bibliografia


CATÁLOGO.Princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização
tecnológica. Disponível em: .Editora PUC-Rio. Acesso em: 01 fev. 2024.
CHELLADURAI, Karthikeyan Subbiahanadar et al. Alternative to FBS in animal
cell culture-An overview and future perspective. Heliyon, v. 7, n. 8, 2021.
Disponível em: https://www.cell.com/heliyon/pdf/S2405-8440(21)01789-8.pdf
. acesso em: 14 mar. 2023.
G1. Primeiro hambúrguer feito em laboratório é provado em Londres. Ciência e
Saúde, 2013. Disponível em : https://g1.globo.com/ciencia-e-
saude/noticia/2013/08/primeiro-hamburguer-feito-em-laboratorio-e-provado-em-
londres.html . Acesso em 08 mar. 2024.
GFI.the good food institute Brasil. A Tecnologia de Proteínas Vegetais
Disponível em : https://gfi.org.br/proteinas-vegetais/. Acesso em 08 mar. 2024.
HOJE, Ciência. Sobre consciência em animais. 2012. Acervo revista Ciência
Hoje. Disponível em: https://cienciahoje.org.br/artigo/sobre-consciencia-em-
animais/ . Acesso em 10 nov 2023.

OBSERVATÓRIO DO CLIM . A. SEEG – Emissões de Gases de Efeito Estufa
no Brasil. Disponível em: https://youtu.be/5yjArWaXnB4 .2014. Acesso em: 15
Nov 2023.
ONU. Consumo de carne é um dos problemas mais urgentes do planeta,
alertam empreendedores, 2018. Disponível em: https://brasil.un.org/pt-
br/81204-consumo-de-carne-%C3%A9-um-dos-problemas-mais-urgentes-do-
planeta-alertam-empreendedores. Acesso em: 04 dez 2023.
PBMC. Painel Brasileiro de Mudanças limáticas. 2013.
http://pbmc.coppe.ufrj.br/index.php/en/news/326-relatorio-da-onu-preve-
catastrofe-ambiental-no-mundo-em-2050. Acesso em 10 nov 2023.
TUOMISTO, Hanna L. The eco‐friendly burger: could cultured meat improve the
environmental sustainability of meat products?. EMBO reports, v. 20, n. 1, p.
e47395, 2019. Disponível em :
https://www.embopress.org/doi/pdf/10.15252/embr.201847395 . acesso em: 08
mar 2024.
VALENTE, Júlia de Paula Soares et al. First glimpse on attitudes of highly
educated consumers towards cell-based meat and related issues in Brazil. PloS
one, v. 14, n. 8, p. e0221129, 2019.Disponível em:
https://journals.plos.org/plosone/article/file?id=10.1371/journal.pone.0221129&t
ype=printable . Acesso em 09 mar. 2024.
NOWATZKI, Jenifer. Avanços nas aplicações do cultivo celular: o uso de soro
fetal bovino está com os dias contados?,Biotecnologia, Blog do Profissão
Biotec (ISSN 2675-6013), Guest post, V.10 (2023). Disponível em:
https://profissaobiotec.com.br/avancos-nas-aplicacoes-do-cultivo-celular-uso-
soro-fetal-bovino-dias-contados/. Acesso em 08 mar. 2024.
WIKIPÉDIA. Aldo Leopold. Disponível em:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Aldo_Leopold. Acesso em 02 nov 2023.
WIKIPÉDIA. Sustentabilidade. Disponível em:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Sustentabilidade . Acesso em 10 dez 2023.
WIKIPÉDIA. Van Rensselaer Potter. Disponível emObservatório do Clima :
https://en-m-wikipedia-
org.translate.goog/wiki/Van_Rensselaer_Potter?_x_tr_sl=en&_x_tr_tl=pt-
PT&_x_tr_hl=pt-PT&_x_tr_pto=tc. Acesso em 10 dez 2023. WIKIPÉDIA. Peter
Singer. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Peter_Singer . Acesso em
10 dez 2023.
WIKIPÉDIA. Gases do efeito estufa. Disponível em:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Gases_do_efeito_estufa . Acesso em 10 dez 2023.
WIKIPÉDIA. Hans Jonas. Disponível em:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Hans_Jonas . Acesso em 08 mar. 2024.
WIKIPÉDIA .Aldo Leopold. Disponível em:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Aldo_Leopold. Acesso em 08 mar. 2024.

WIKIPÉDIA .Peter Singer. Disponível em:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Peter_Singer – Acesso em 08 mar. 2024.
WIKIPÉDIA .Van Rensselaer Potter. Disponível em:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Van_Rensselaer_Potter. Acesso em 08 mar. 2024.


Ilustração da autora feita com o software biorender

Co-autoria:

João Almeida: Licenciado em Ciências Biológicas pela UFRJ, Bacharel em Filosofia pela UNISUL, Mestre e Doutor e Biofísica pela UFRJ

Deixe um comentário