Estamos diante de um momento histórico sem precedentes, descrito pela Organização das Nações Unidas (ONU) e divulgado pelo Painel Brasileiro de mudanças climáticas (pbmc) como a grande catástrofe ambiental, contando com um preocupante cenário de mudanças climáticas, degradação ambiental e crescente vulnerabilidade socioeconômica.
De acordo com a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura – FAO, até 2050 a população mundial poderá chegar a 10 bilhões de pessoas, enquanto a demanda por carne tende a subir em aproximadamente 70%, necessitando de alternativas alimentares sustentáveis e economicamente éticas,garantindo assim, a sobrevivência das atuais e futuras gerações.
Nesse sentido, a carne cultivada, também descrita como carne celular e carne sem abate, trata-se de uma aplicação biotecnológica disruptiva e sustentável capaz de produzir carne genuína sem a necessidade de abater animais e com menor uso de água, terra e recursos agrícolas.
Como fazer
Para produzir carne cultivada é preciso coletar células musculares de animais como bovinos, suínos e aves (1), selecioná-la se condicioná-la sem biorreatores (semelhantes a fermentadores de cerveja) para multiplicação e diferenciação, em meio de cultura composto por soro fetal bovino (ou alternativo) e diversos nutrientes como aminoácidos, glicose, minerais e vitaminas (2), para obtenção da carne em até 8 semanas(3), ao contrário do animal vivo que pode levar anos para estar pronto ao abate. Conforme figura abaixo*.
O soro bovino ou FBS, do inglês “fetal bovine serum” é necessário à adesão e desenvolvimento celular, todavia, carrega entraves bioéticas que sugerem urgente substituição por fontes não animais, por se tratar de um composto obtido a partir do sangue de fetos bovinos, com elevado custo, variabilidade indesejada entre lotes e aumento da demanda. Entretanto, diversos pesquisadores vêm desenvolvendo substituições viáveis parciais ou totais ao FBS (CHELLADURAI ET. AL, 2021). Esse é um dos principais entraves bioéticos à questão da implementação da carne cultivada, pois enquanto não for solucionado, o processo continua sendo associado à matança de animais.
Carne cultivada e bioética
Desde 2013, quando o primeiro bife de hambúrguer foi produzido pelo farmacologista e professor holandês Mark Post da Universidade de Maastricht e amplamente divulgado pela mídia, muito tem se discutido sobre a responsabilidade humana em buscar alternativas sustentáveis para suprir as necessidades de consumo, mitigar os impactos ambientais e o sofrimento animal.
Hans Jonas, filósofo alemão e defensor da ética da responsabilidade, enfatiza em sua obra “O Princípio Responsabilidade – Ensaio de uma ética para a Civilização tecnológica” a importância de nossa atuação presente na sobrevivência das gerações futuras, o que se torna relevante se pensarmos no impacto que a criação de animais para abate tem na geração de gases de efeito estufa e no consumo de água potável, elementos que cada vez mais se tornam críticos para a sobrevivência do planeta. Essas considerações se alinham com a visão do filósofo ambientalista norte americano Aldo Leopold, antecessor e pioneiro na ética ambiental, que defendia a necessidade de uma relação ética entre o ser humano e a natureza. Para o médico e bioeticista norte americano, Van Rensselaer Potter, criador do termo “bioética” como a ética da vida, existe a necessidade de uma ética que comporte e respeite todas as formas de vida, a fim de que possamos garantir a sobrevivência da humanidade e da vida como a conhecemos em nosso planeta.
Peter Singer, filósofo ético e defensor dos direitos dos animais, por outro lado, sugere considerar o sofrimento animal em nossas escolhas alimentares. Para Singer e conforme exposto na Declaração sobre a Consciência Animal de Cambridge de 2012, os animais não humanos são dotados de “consciência”, ampliando-se o conceito anteriormente abordado como “senciência”. David B. Edelman, um dos neurocientistas signatários da declaração, consciência é a “capacidade de perceber um cenário integrado e mantê-lo em sua memória”.Embora de maneira diferente à percepção humana, os animais se percebem inseridos no meio em que vivem, expressando sentimentos como alegria e medo,e buscam pela autopreservação, amparados por substratos neurológicos. Dessa forma, o desenvolvimento do consumo da carne celular também atenderia a pressupostos bioéticos ao diminuir o sofrimento dos animais tanto quanto à criação confinada quanto ao abate de animais, que não seriam mais necessários.
No Brasil, em pesquisa sobre a aceitação da carne celular, Valente e colaboradores da Universidade Federal do Paraná demonstraram que a maior parte dos entrevistados estão abertos ao consumo, e embora pessoas que não consomem carne como vegetarianos e veganos tenham exibido menor interesse, segundo a pesquisa a implantação dessa tecnologia poderia ser uma alternativa viável ao consumo de carne derivada do abate animal.
Assim, essa carne inovadora, sustentável e ética possui potencial mercadológico como as proteínas vegetais (já comercializadas e bem aceitas) para conviver no mercado de proteínas, demonstrando que um tipo de proteína não excluirá a outra. Nesse sentido, não é prevista a substituição da carne por abate pela nova proteína e sim a criação de oportunidade de novos mercados, oferta de mais postos de trabalho, ampliação de campos de pesquisa e capacitação de novos profissionais em toda a cadeia logística, desde a fábrica até chegar à mesa das pessoas.
A jornada em direção a um futuro alimentar sustentável é inseparável da responsabilidade ética, do respeito à vida e da conscientização cultural, moldando caminhos que honrem não apenas nossa nutrição, mas também nossas responsabilidades éticas para com o planeta e todas as formas de vida.
Bibliografia
CATÁLOGO.Princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização
tecnológica. Disponível em: .Editora PUC-Rio. Acesso em: 01 fev. 2024.
CHELLADURAI, Karthikeyan Subbiahanadar et al. Alternative to FBS in animal
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WIKIPÉDIA .Aldo Leopold. Disponível em:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Aldo_Leopold. Acesso em 08 mar. 2024.
WIKIPÉDIA .Peter Singer. Disponível em:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Peter_Singer – Acesso em 08 mar. 2024.
WIKIPÉDIA .Van Rensselaer Potter. Disponível em:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Van_Rensselaer_Potter. Acesso em 08 mar. 2024.
Ilustração da autora feita com o software biorender
Co-autoria:
João Almeida: Licenciado em Ciências Biológicas pela UFRJ, Bacharel em Filosofia pela UNISUL, Mestre e Doutor e Biofísica pela UFRJ