Mês de março é o mês que comemoramos as lutas de todas as mulheres e meninas, por respeito, por igualdade de direitos, por liberdade, por oportunidades iguais, e pelo que hoje, ainda, clamamos com todas as forças dos pulmões, o direito de viver!!!! O número de feminicídios divulgado em novembro/2023 relativo ao primeiro semestre de 2023 foi de 722 e de 1902 homicídios de mulheres (BUENO et al., 2023).
Não podemos falar da luta das mulheres sem considerar que estamos nela há muitos séculos.
Para isso vamos recorrer a Olympe de Gouges com seu manifesto de 1791. E aqui devemos fazer nosso seu apelo à reflexão endereçado a todo e qualquer homem:
“Homem, sabes ser justo? É uma mulher que te pergunta: não quererás tolher-lhe esse direito? Dize-me, quem te deu o soberano poder de oprimir o meu sexo? A tua força? As tuas capacidades?”.
Lançada há 232 anos, a convocação à reflexão de Olympe de Gouges continua atual, sua força é nossa inspiração.
Assim começa a declaração dos direitos da mulher e da cidadã:
“Art 1º A mulher nasce livre e tem os mesmos direitos do homem. As distinções sociais só podem ser baseadas no interesse comum.
Art 2º O objetivo de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis da mulher e do homem: esses direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e, sobretudo, a resistência à opressão.”
Sugiro a leitura atenta do manifesto em “A Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã” publicada pela Fundação Perseu Abramo (S/D).
Trazer Olympe de Gouges é uma homenagem a todas as mulheres que vieram antes dela e depois dela; é um marco de força e de coragem que não podemos deixar de reconhecer e de nos deixar contaminar com elas, substantivos femininos que são a força e a coragem.
Acrescente-se à sua biografia, como faz a Fundação Perseu Abramo, “no contexto dramático da Revolução Francesa, por causa da sua crítica pública aos valores patriarcais e à violência do poder jacobino, ela foi guilhotinada em 1793”.
Tal como Marielle Franco silenciada covardemente pelo patriarcado e a extrema-direita genocida em 14 de março de 2018 no Rio de Janeiro.
O assassinato de mulheres, por motivos políticos ou por familiares e companheiros é fato corriqueiro do nosso cotidiano.
Não só no Brasil, mas de todo o mundo. Trago agora Vivir Quintana para expressar a força da mulher latino-americana, a compositora da canção Canción sin miedo, que virou hino das manifestações feministas na América Latina.
Canción sin Miedo - Vivir Quintana “Deixe o Estado, os céus, as ruas tremerem Deixe os juízes e oficiais de justiça tremerem Hoje eles tiram a nossa calma como mulheres Eles instilaram medo em nós, cresceram asas em nós Cada minuto, cada semana Eles roubam nossas amigas, matam nossas irmãs Eles destroem seus corpos, e com eles desaparecem Não se esqueça dos nomes delas, por favor, Sr. Presidente. Para todas as compas marchando na Reforma Para todas as garotas que lutam em Sonora Para as comandantas que lutam por Chiapas Para todas as mães que procuram em Tijuana Cantamos sem medo, pedimos justiça Gritamos por cada pessoa desaparecida Deixe ressoar alto "nós nos queremos vivas!" Deixe o feminicídio cair com força Eu queimo tudo, quebro tudo Se um dia algum cara tirar seus olhos Nada mais me silencia, tudo me basta Se eles tocarem em uma, todas nós responderemos Eu sou Cláudia, sou Esther e sou Teresa Eu sou Ingrid, sou Fabíola e sou Valéria Eu sou a menina que você tomou pela força Eu sou a mãe que agora chora por suas mortas E eu sou essa que vai fazer você pagar as contas Justiça, justiça, justiça! Para todas as compas marchando na Reforma Para todas as garotas que lutam em Sonora Para as comandantas que lutam por Chiapas Para todas as mães que procuram em Tijuana Cantamos sem medo, pedimos justiça Gritamos por cada pessoa desaparecida Que ressoe forte "nós nos queremos vivas!" Que caia com força o feminicida! Que caia com força o feminicida! E deixe a terra tremer em seus centros Ao rugido do amor E deixe a terra tremer em seus centros Ao rugido do amor”
É Quintana quem nos convida a refletir com esta canção:
“É objeto de estudo sobre como a dor realmente nos aproxima, conecta a nós, mulheres, não só no México, mas também na América Latina e no mundo. É como um oxímoro de doce alegria, mas também de doçura amarga”.
Vale a pena ouvir a canção (vídeo abaixo)
A ONU, em 2015, elencou os 17 objetivos que o planeta terá que alcançar em nome de um mundo justo e inclusivo para todos e todas. Ao lado da proteção do meio ambiente em termos da vida na terra e no mar, do saneamento básico, da erradicação da pobreza e da fome, a igualdade de gênero é um dos objetivos.
Tais objetivos trazem duas características fundamentais: “como um apelo universal para acabar com a pobreza, proteger o planeta e garantir que até 2030 todas as pessoas desfrutem de paz e prosperidade” e eles precisam ser vistos como indissociáveis, “integrados – reconhecem que a ação numa área afetará os resultados noutras e que o desenvolvimento deve equilibrar a sustentabilidade social, econômica e ambiental”.
Dito de outra forma, é o reconhecimento mundial de que terá que haver um esforço enorme de todos, e em especial dos Estados Nacionais, para nos aproximarmos dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030..
Assim, diante da luta das mulheres ao longo dos séculos e do reconhecimento mundial de que sem igualdade de gênero não haverá justiça no mundo, nos vemos numa encruzilhada agora.
Diversas são as formas e caminhos que a sociedade patriarcal encontra para suprimir os direitos de mulheres e meninas.
A violação de direitos básicos de meninas e mulheres se dá desde coisas simples, como a ameaça de empresas indo à justiça contra a Lei de Igualdade Salarial (14.611/2023), que foi criada com a pretensão de reduzir as lacunas, eliminando, assim, a disparidade salarial baseada em gênero, o que proporcionaria uma maior segurança para todas as mulheres.
Temos também a sinalização do Anuário de Segurança Pública que mostra que a exploração sexual contra crianças de 0 a 17 anos teve um aumento em números absolutos de 7,0% e 16,4% respectivamente. A cultura machista, patriarcal, a desigualdade social e a fiscalização insuficiente para a proteção dessas meninas, só aumentam a vulnerabilidade de crianças e adolescentes à exploração sexual.
O problema do feminicídio, alguns com crueldade, precisa ser enfrentado com rigor. O Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro divulgou novos dados que mostram um aumento de 33% de mulheres vítimas de feminicídio, se comparado com janeiro de 2023. Vemos com muita frequência as mortes de mulheres que poderiam ter sido evitadas, não fosse a morosidade da justiça em conceder e aplicar medidas protetivas de urgência, com a criação de redes de proteção para as mulheres, com a educação sexual nas escolas, com a educação para a paz desde a infância, ensinar respeitando o Outro, coibir o bullying e o assédio sexual de todas as formas.
Como se não bastasse, nos vemos diante de mortes evitáveis de mulheres que fazem abortos inseguros, aqueles que ocorrem quando a gestação é indesejada. E gestações indesejadas acontecem. Seja porque o preservativo rasgou na hora, porque o espermicida estava vencido, etc., etc., às vezes a decisão de não ter aquela criança é compartilhada inclusive com o companheiro, mas o risco, quem assume mesmo, é a mulher, com sua vida.
Quando não morre vai para o hospital e é objeto de crueldade, “na hora de fazer gostou, né? Agora vai sofrer” como se a concepção da mulher fosse um mecanismo qualquer de partenogênese. Os machos das abelhas e formigas são gerados por partenogênese, são os óvulos não fecundados que os geram.
Mas, nós humanos nos reproduzimos com a participação do macho. No entanto, é a mulher que é proibida de interromper a gravidez e é acusada de assassinato. Ou enfrenta a morte, a prisão ou a humilhação. É aqui que a descriminalização do aborto entra como uma proposta de cuidado com as mulheres, cuidado merecido por todas as lutas travadas por justiça.
Aqui no Brasil temos mais um problema. A lei permite o aborto de fetos anencefálicos, fruto de estupro ou por risco de morte da mãe. Mas ainda assim, a mulher sofre. Porque na nossa sociedade patriarcal precisa encontrar um hospital que cumpra a lei.
Vimos recentemente um caso que virou notícia de jornal da menina de 11 anos, grávida, que peregrinou por inúmeros hospitais até que conseguisse fazer o aborto.
Há falta de assistência adequada mesmo para os casos que não são punidos no Código Penal. O estudo “Não posso passar essa informação: direito ao aborto legal no Brasil” (2021), mostra que os hospitais, que deveriam acolher a vítima de estupro, fornecem falsas informações e tentam desestimular meninas e mulheres de escolher realizar o aborto legal, as vitimizando mais uma vez.
O que dizíamos no início, as centenas de anos de luta das mulheres em todo o mundo e no Brasil continua longe de terminar. Muito conquistamos, mas ainda temos muitos retrocessos aqui e ali.
Como começamos este artigo, a luta das mulheres é a luta de toda sociedade democrática que pretende ser inclusiva e pluralista. Como na música de Vivir Quintana e no manifesto de Olympe de Gouges, nós lutamos por toda a sociedade e queremos valorizar nossas diferenças.
Referencias
ALMEIDA, E. V. L., CARNEIRO, L. R. P., BRITO, L. M. T. D., & RUIVO, M. I. L. (2021). Não posso passar essa informação”: o direito ao aborto legal no Brasil. In Nesprom, Ceam, UNB. X Congresso Virtual de Gestão, Educação e Promoção da Saúde. Disponível em: https://convibra.org/publicacao/26657/
Anuário Brasileiro de Segurança Pública / Fórum Brasileiro de Segurança Pública. São Paulo: FBSP, 2023.
BUENO, Samira et al. Violência contra meninas e mulheres no 1º semestre de 2023. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2023. ISBN 978-65-89596-21-9.
Disponível em https://publicacoes.forumseguranca.org.br/handle/123456789/231
Folha de São Paulo. Empresas querem ir à justiça contra Lei da Igualdade Salarial, diz ministra das Mulheres. 17 de fevereiro de 2024. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2024/02/empresas-querem-ir-a-justica-contra-lei-da-igualdade-salarial-diz-ministra-das-mulheres.shtml
FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO (S/D). A “Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã” de 1791. Disponível em https://fpabramo.org.br/2008/03/27/a-declaracao-dos-direitos-da-mulher-e-da-cidada/
PNUD(S/D). Objetivos do Desenvolvimento Sustentável. Acessado em 27/02.Disponível em https://www.undp.org/sustainable-development-goals?gad_source=1&gclid=CjwKCAiArfauBhApEiwAeoB7qEqLZwwM6NiT6saga5t5LCct_bC6JsAMIGhrZtgDFe4JI0KySBbpYxoCVu8QAvD_BwE
Portal G1. Feminicídios aumentam 33% em janeiro no Rio de Janeiro. 28 de fevereiro de 2024. Disponível em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2024/02/28/feminicidios-aumentam-33percent-em-janeiro-no-rj.ghtml
Portal G1. Menina de 11 anos vítima de estupro e grávida pela 2ª vez, no Piauí, queria abortar e voltar à escola. Setembro 2022. Disponível em https://g1.globo.com/pi/piaui/noticia/2022/09/12/menina-de-11-anos-vitima-de-estupro-e-gravida-pela-2a-vez-no-piaui-queria-abortar-e-voltar-a-escola.ghtml
QUINTANA, V. Canción Sin Miedo. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=K5jDXE4sncU
Marisa Palácios – médica, presidente da Sociedade Brasileira de Bioética – regional RJ, professora titular de Bioética da UFRJ, diretora do NUBEA/CCS/UFRJ.
Roberta Lemos – fisioterapeuta, coordenadora da Comissão Temática “Mulheres e Meninas” da Sociedade Brasileira de Bioética – regional RJ, pesquisadora do NIESP/CEE/Fiocruz, doutora em Bioética, ética aplicada e saúde coletiva.
É médica pela UFRJ (1983), mestre em Saúde Coletiva pela UERJ (1993) e doutora em Engenharia de Produção pela UFRJ. É presidente da Sociedade de Brasileira de Bioética Regional Rio de Janeiro. É professora titular de Bioética da UFRJ. É diretora do Núcleo de Bioética e Ética Aplicada – NUBEA/CCS/UFRJ. É docente permanente do Programa de Pós-graduação em Bioética, Ética Aplicada e Saúde Coletiva-, em associação das IES UFRJ, FIOCRUZ, UERJ e UFF- PPGBIOS. Pesquisa em Bioética Clínica, Ética em Pesquisa e Ética nas Relações de Trabalho.
Co-autoria de Roberta Lemos
Imagem gerada por Inteligência Artificial