O nascimento da ovelha Dolly, em 1996, o primeiro mamífero clonado a partir de células somáticas, foi um importante marco para a comunidade científica e impulsionou o fomento de inúmeras pesquisas pelo mundo sobre clonagem. Essa tecnologia que até a algumas décadas habitava apenas nosso imaginário e os filmes de ficção científica, se apresenta como uma realidade cada vez mais tangível graças aos avanços exponenciais das pesquisas em Genética e Biotecnologia. Assim, passados 25 anos, mais de 20 tipos de mamíferos entre cães, gatos, porcos e bovinos já foram clonados com a técnica de Transferência Nuclear de Células Somáticas (SCNT). A clonagem representa um marco na Ciência, mas também nos convida a refletir sobre o valor e a singularidade da vida.
Em artigo publicado neste ano pela revista Nature, a mesma que noticiou na época, a clonagem de Dolly, cientistas informam terem realizado com sucesso a clonagem do primeiro mamífero primata, da espécie Rhesus. Das 113 tentativas com embriões, nasceu Retro, que tem hoje 3 anos de idade e segundo os pesquisadores está crescendo com um desenvolvimento saudável. A clonagem envolvendo macacos, nossos parentes mais próximos, reacende questões éticas importantes, sobre a possibilidade de a mesma tecnologia ser aplicada em seres humanos. Mas, estaríamos preparados para tais promessas e potenciais perigos aplicados em nossa própria espécie?
Tipos de Clonagem e Questões Éticas
É fato que a tecnologia de clonagem suscita debates intensos tanto na comunidade científica quanto na sociedade em geral em torno dos riscos e benefícios que a técnica oferece. Existem dois tipos de clonagem: a terapêutica e a reprodutiva. Nos dois processos, a clonagem se dá pela mesma técnica, denominada transferência nuclear, que consiste em inserir o DNA de uma célula somática no interior de um óvulo “vazio”, sem núcleo. A diferença está em seus objetivos e implicações éticas. A clonagem terapêutica visa produzir tecidos ou células geneticamente idênticas ao doador para tratamento médico ou para fins de pesquisa. Nesse contexto, podemos pensar nos muitos benefícios para a medicina regenerativa, na diminuição significativa de pacientes à espera de um órgão na fila de transplantes, no tratamento de doenças degenerativas, na elaboração de terapias personalizadas, na pesquisa e desenvolvimento de medicamentos.
A clonagem reprodutiva, por sua vez, tem o objetivo de criar um organismo vivo geneticamente igual a outro. Na natureza, isso já acontece com os gêmeos idênticos, considerados clones naturais. Na clonagem reprodutiva, o embrião resultante é implantado no útero de uma mãe substituta, para que se desenvolva até o nascimento. A possibilidade de criar cópias genéticas de um ser vivo que já existiu ou que ainda existe traz à tona uma série de preocupações do ponto de vista da responsabilidade ética. E essa preocupação se amplifica quando pensamos nesse tipo de tecnologia aplicada em seres humanos, o que nos desperta questionamentos sobre: Por que clonar? Quem deverá ser clonado? Para quem essa técnica estará disponível? Quem poderá pagar por ela? Quem decidirá sua aplicação? O que fazer com cópias nascidas com ”defeito”? Quem ou quais instâncias irão se responsabilizar? E as perguntas não se esgotam por aqui.
Polêmicas e Impactos Sociais da Clonagem
Diante de tantas incertezas, em todo o mundo, a clonagem reprodutiva se defronta com proibições explícitas, sendo considerada uma prática ilegal, em virtude das profundas preocupações éticas em torno das consequências de sua aplicação. Já a clonagem terapêutica, tem sido geralmente apoiada e regulamentada em virtude do potencial benefício em promover a pesquisa e o desenvolvimento de tratamentos médicos. No entanto, ela parece não estar apenas sendo desenvolvida com esses objetivos nobres. Cientistas prometendo trazer de volta à vida animais de estimação, em laboratórios que funcionam como uma verdadeira fábrica de clones trazem à tona um comércio que movimenta milhares de dólares. Disponível para poucos, essa exploração comercial levanta preocupações quando pensamos na aplicação indiscriminada dessa técnica em seres humanos.
Ano passado, um documentário lançado em uma plataforma de streaming intitulado “Reis dos Clones” retratou essa temática ao exibir a trajetória meteórica do cientista sul-coreano Hwang Woo-suk, um ex-professor da Universidade Nacional de Seul, que ficou conhecido como o “Orgulho da Coreia” devido aos seus avanços na pesquisa de células-tronco e clonagem. Hwang começou com a clonagem bem-sucedida de animais como vacas e porcos, chegando até a clonagem de animais de estimação. O documentário cita o sucesso em clonar o camelo, Mabrokan campeão de corrida nos Emirados Árabes e um cão de estimação de um tutor italiano. Para os donos dos animais, o êxito da técnica se traduz na tentativa de se evitar o luto e ter de volta seus animais já falecidos, na expectativa de obter as mesmas sensações e experiências vividas anteriormente. Será?
Um ponto que chama a nossa atenção: Será que os clones terão as mesmas percepções, a mesma vida de sua matriz original? O Mabrokan terá o mesmo êxito nas corridas e o cão será o mesmo animal, amado do seu dono? Trazendo essa perspectiva para a nossa realidade, será que um clone humano reproduzirá o mesmo projeto de vida? Antes de continuarmos nossa reflexão, voltemos ao desfecho do documentário “Rei dos Clones”.
Depois de ficar conhecido por clonar dezenas de animais, o cientista Hwang experimentou a glória e o fracasso ao divulgar ambiciosamente a clonagem de embriões humanos em 2004, desencadeando um intenso debate bioético. Na época, até então aclamado como um herói em sua nação, Hwang caiu em desgraça ao se constatar inúmeras irregularidades em sua pesquisa, como fraudes nos resultados, falsificação de dados, obtenção de óvulos de forma ilegal, inclusive com a manipulação de suas próprias alunas de pós-graduação para que fossem doadoras durante a pesquisa.
Foi comprovado que nunca havia se conseguido de fato clonar um embrião humano. Sua pesquisa em clonagem e células-tronco violou múltiplos princípios éticos principalmente no que diz respeito à responsabilidade, transparência, respeito pela dignidade humana, precaução, consideração pelas gerações futuras e a ética do cuidado. Diante de tantos escândalos, o resultado não poderia ser diferente, com a condenação pela justiça de seu país, e o total descrédito do seu trabalho pela comunidade científica.
Reflexões Bioéticas e o Futuro da Clonagem
Devido a esses fatos, devemos pensar com muita precaução nos objetivos que a clonagem nos apresenta, principalmente no que diz respeito à técnica reprodutiva. Se já é possível clonar animais de estimação, imaginemos clínicas de reprodução, onde os pais poderão escolher as características de seus filhos, obtendo assim, clones à imagem e perfeição de sua vontade. Um familiar falecido, alguém com características físicas ou cognitivas superiores, um gênio das artes ou dos esportes. Imaginemos os dilemas envolvidos, por exemplo, ao nascer uma criança, clone do avô falecido, se essa cresceria sendo tratada como o avô ou como um indivíduo único. Será que temos o direito de interferir na origem dos nossos genes?
Por falar em humanidade, e retornando à reflexão sobre a clonagem em seres humanos nos debruçamos assim, em inúmeras inquietações éticas. Um clone teria então a obrigação de realizar uma expectativa de dar continuidade a projetos de vida que não são seus, mas de sua matriz, o que confrontaria conceitos de liberdade e autodeterminação. Além disso, os impactos psicológicos na vida de alguém que descobre ser um clone poderiam ser arrasadores.
Os efeitos também se estendem na diversidade humana, pois a vida não sendo criada ao acaso da natureza poderia gerar indivíduos com as mesmas características diminuindo a variabilidade da espécie e reforçando conceitos racistas ou guiados por questões de preferências estimuladas pelas mídias. A composição familiar e o próprio conceito de individualidade também estariam em jogo, acarretando consequências para as gerações futuras. Tudo em nome da projeção de modelos de vida.
No entanto, a própria ciência mostra que a manipulação da natureza humana não garante totalmente o determinismo genético. Será que se tivéssemos um clone de Einstein nos dias de hoje, teríamos um renomado gênio da Física? Não somos fruto inteiramente da genética, mas também do meio em que vivemos e das experiências adquiridas. Privar um clone de um futuro flexível e confina-lo às expectativas de um propósito genético pré-determinado é tolher o direito de escolha e sujeitar a sociedade aos riscos de mercantilização da vida colocando em conflito o conceito de unicidade.
Pensando nesses dilemas, um clone de Lionel Messi, por exemplo, talvez não quisesse ser um jogador de futebol, mesmo tendo nascido carregado com a perspectiva de ser uma continuidade daquele que o gerou. As implicações biológicas, psicológicas, sociais e, sobretudo bioéticas são muito intensas, complexas e urgentes.
O filósofo e escritor estadunidense Michael Sandel em seu livro “Contra a perfeição: Ética na era da engenharia genética” ressalta todas essas implicações e a necessidade de reflexão justamente porque a ciência tem avançado mais do que a compreensão moral. O autor questiona nossa proficiência tecnológica diante do dilema moral que surge quando as pessoas utilizam a técnica não para curar doenças, mas para ir além da saúde, em prol do melhoramento de suas capacidades físicas ou cognitivas, colocando-se acima da norma geral.
O fato é que inevitavelmente, estamos diante de importantes desafios advindos da tecnologia de clonagem e que nos requisitam uma profunda conscientização ética. Torna-se imperativo que, o avanço tecnológico ocorra em prol do bem-estar comum da sociedade, homologando assim o princípio da dignidade humana. A reflexão e o debate contínuos são imprescindíveis para nortear a compreensão e enfrentamento de tais questões. A clonagem nos alerta sobre a importância de equilibrar os limites da ciência com os valores que definem nossa natureza humana, e que legitimam sem sombra de dúvidas, nossa singularidade.
Licenciada em Biologia pela UENF e Graduada em Pedagogia pela
UNINTER, Pós-graduada em Educação Ambiental pelo IFF – RJ e em Neuropsicopedagogia pela faculdade IBRA, Mestranda em Cognição e Linguagem pela UENF, Professora da rede Estadual e Municipal de Educação.
Co-autoria de Rafael Guthier Tavares Goulart
Imagem gerada por Inteligência Artificial