Inteligência Artificial e turismo de fertilização: atuais desdobramentos

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Raquel Veggi Moreira

Na mitologia grega, Cronos, o deus do tempo, ao saber de um oráculo que seria futuramente destronado por um de seus filhos, passou a devorá-los, um por um, para que assim nenhum deles pudesse lhe tomar o poder.

Mas um de seus filhos, Zeus, foi salvo por sua mãe e, de fato, destronou Cronos, cumprindo a profecia.

A história de Cronos é muito utilizada em analogia à teoria disruptiva de Schumpeter, demonstrando que o tempo devora as coisas e por isso devem ser aproveitadas ao máximo.

Na economia, a teoria diz que seu movimento acontece por meio dos ciclos tecnológicos, nos quais novas inovações tecnológicas sempre superam as antigas, as devorando. E a Inteligência Artificial (IA) parece ser uma tecnologia que tem, de certa forma, quando não “devorado”, absorvido todas as outras, as aperfeiçoando de alguma forma.

Nesse prisma, a convergência existente entre Inteligência Artificial, turismo de fertilização e bioética possibilita reflexões sobre as transformações sociais, éticas e tecnológicas na sociedade da informação.

Os três elementos, aparentemente díspares, compõem uma narrativa complexa que destaca o papel cada vez mais ubíquo da IA ​​no desenvolvimento da sociedade e, agora, também presente no aperfeiçoamento da medicina reprodutiva, com o uso de sistemas inteligentes como o Smart PGT-A e o Time-Lapse, refletindo desafios éticos que emergem desse avanço.

Compreende-se que a Inteligência Artificial tem desempenhado um papel revolucionário na otimização dos processos médicos, dentre eles, a medicina reprodutiva, denominada “reprodução assistida”. Isso em razão da capacidade de processar grandes volumes de dados, analisar padrões e predizer resultados, o que possibilitou a personalização de abordagens para casais que buscam assistência na concepção.

A tecnologia se desenvolve por meio de algoritmos de aprendizado de máquina (machine learning), que são capazes de analisar históricos médicos, avaliar a eficácia de diferentes protocolos de fertilização e prever o sucesso de técnicas específicas de forma precisa, a partir da análise de estatísticas.

A aprendizagem de máquina desperta riscos desconhecidos, uma vez que as IAs generativas estão, cada vez mais, sendo treinadas a tomar decisões independentes da supervisão humana.

E, como ainda não foi possível criar o algoritmo do “bom senso”, surge a preocupação se o desenvolvimento científico por meio da implementação de sistemas inteligentes será  capaz de resguardar os preceitos da dignidade da pessoa humana, direitos humanos e as liberdades fundamentais, previstas como objetivos da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, o que normalmente demanda decisões éticas, por vezes, bastante subjetivas

Em outra linha de desenvolvimento social, observa-se uma crescente procura pelo chamado “turismo de fertilização”. O termo se refere a casais em busca de tratamentos de fertilidade.

Tem sido observada a ultrapassagem das fronteiras por estrangeiros, especialmente de origem africana, que vêm ao Brasil buscando as melhores práticas médicas, instalações clínicas e hospitalares com tecnologia de ponta, que, em nosso país, vêm acompanhadas por custos mais acessíveis quando comparadas ao exterior, além do idioma comum para as turistas africanas, por exemplo como de Angola e de Moçambique.

No caso de pacientes americanas e canadenses, a procura pelas clínicas brasileiras ocorre em razão do baixo custo, quando comparadas às clínicas estrangeiras, não deixando a desejar no que se refere às tecnologias e qualidade dos tratamentos.

O uso da IA, nesse contexto, não oferece apenas uma análise personalizada para aumentar as taxas de sucesso do procedimento, mas pode, também, ser uma facilitadora em outros segmentos necessários aos pacientes estrangeiros, fornecendo a eles, informações sobre os destinos, protocolos médicos e, até mesmo, tradução da língua em tempo real.

Consequentemente, a associação entre IA e turismo de fertilização é submetida a desafios bioéticos. Dentre eles, tem-se a equidade no acesso às tecnologias avançadas, que podem sofrer limitações em razão de barreiras financeiras e geográficas, uma vez que a população brasileira economicamente vulnerável não consegue acessar os tratamentos cujos preços podem variar entre 10 a 15 mil reais.

Nesse sentido, é questionável, também, a falta de investimento na saúde pública brasileira, para proporcionar à população feminina do nosso país o acesso gratuito aos tratamentos de qualidade que são procurados pelos estrangeiros na rede de saúde particular brasileira, uma vez que possibilitar a maternidade é um viés pertinente à dignidade da pessoa humana, como previsto na Constituição, e que deve ser garantido pelo Estado.

Em outro prisma, consideram-se as questões relacionadas à privacidade e proteção dos dados de saúde e à manipulação genética, sendo dados considerados sensíveis pela Lei Geral de Proteção de Dados, sob os quais nem sempre se terá controle absoluto, a depender do tipo de IA utilizada em seu tratamento, pois, como abordado anteriormente, as tecnologias de IA que empregam machine learning podem se desenvolver de forma autônoma, devendo-se criar mecanismos de salvaguarda para garantir que o tratamento dos dados pessoais sensíveis de cada paciente observará os parâmetros legais, quando esses bancos de dados forem abertos para as IAs generativas.

Sendo assim, o avanço rápido da IA ​​na medicina reprodutiva também levanta questões determinantes sobre a ética da intervenção humana no processo de procriação, considerando-se que as IAs possam vir a adquirir funções de intervenção direta em processo biológicos, e não apenas no fornecimento de informações a intermediários humanos, adquirindo a capacidade manipulativa de modificar geneticamente os embriões, prever características específicas e, até mesmo, escolher traços desejados que levantam dilemas bioéticos.

Nesse sentido, embora existam regulamentações do Conselho Federal de Medicina (CFM) vetando procedimentos discriminatórios, é preciso lembrar que decisões bioéticas nem sempre são meramente principialistas ou casuísticas, envolvendo decisões de “faça ou não faça”.

Além disso, o próprio treinamento de modelos de inteligência artificial tem neles embutido vieses discriminatórios dos mais diversos tipos, decorrentes das crenças e ideologias de seus criadores, o que pode desencadear uma seleção genética com discriminações.

A sociedade como um todo encontra-se, então, diante da responsabilidade de determinar os limites bioéticos das manipulações tecnológicas intermediadas pelas tecnologias de IA, buscando um equilíbrio entre o avanço científico e os valores fundamentais da humanidade, antes de delegar o poder de decisão sobre o futuro de nossa espécie.

Os dilemas éticos já presentes na reprodução assistida são os mais variados, desde problemas como o atrito entre o direito de anonimato dos doadores e o direito de se conhecer a origem biológica, até preocupações quanto à atribuição de caráter mercantil à reprodução da raça humana, como por meio da contratação de doadores melhor qualificados ou pela possibilidade de pagar às clínicas para selecionar características específicas, interferindo no balanço genético da espécie e suas características.

Delegar essa decisão a inteligências artificiais quando nós mesmos ainda não somos capazes de chegar a consensos (que nem sempre são possíveis), parece ser por demais temerário.

Ademais, ao se considerar que, no Brasil, o acesso às melhores técnicas estaria condicionado às melhores condições financeiras, uma vez que, pelo Sistema Único de Saúde (SUS), o acesso aos procedimentos de fertilização é burocrático e não necessariamente gratuito em sua totalidade, visualiza-se uma maior segmentação da sociedade, em que junto da discriminação sócio-econômica para o uso das tecnologias, seria adicionada a discriminação em razão de melhoramento genético, em uma sociedade na qual quem tem mais dinheiro poderia ter melhores características genéticas.

A discussão desafia a reflexão sobre os rumos e limites da reprodução assistida, como a possibilidade de se moldar artificialmente um futuro, criando indivíduos com características genéticas selecionadas. A então existência da IA, do turismo de fertilização e do direito à reprodução assistida ética e com acesso equânime é questionável.

A Europa e o Brasil já vêm buscando meios de regulamentar a inteligência artificial, buscando estabelecer parâmetros éticos no seu desenvolvimento para que se afaste, essencialmente, os vieses algorítmicos dos programadores, que são incorporados de forma involuntária às tecnologias de IA.

Mas a criação de um senso ético comum parece ainda ser uma possibilidade distante, o que implica diretamente a questão da reponsabilidade de delegação do poder de decisão sobre a vida e a reprodução humana.

Por outro lado, isso mostra a urgência de uma regulamentação para o uso das IAs na reprodução assistida.

Com a regulamentação da IA, os procedimentos médicos que utilizam as tecnologias vão dispor de mais confiabilidade.

Consequentemente, uma adequação bioética mais segura para as pacientes que utilizarem as técnicas inteligentes de fertilização, sejam elas brasileiras ou estrangeiras, em busca de procedimentos tecnológicos melhores e mais acessíveis financeiramente.


Colaborou: João Carlos de Aquino Almeida

Imagem gerada por Inteligência Artificial

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