Queridas amigas, queridos amigos,
O ano já vai terminando, é uma época de avaliarmos o que passou e renovarmos as esperanças para o ano que chega. Sem dúvida caberia uma análise de conjuntura e daí apresentarmos uma perspectiva esperançosa de grandes mudanças no cenário internacional, latino-americano e nacional.
Os fatos, é bem verdade, não nos animam muito a fazer qualquer previsão ou prognóstico de um mundo mais justo. Ao contrário, as opressões dos grupos vulnerabilizados, sejam através das guerras declaradas ou não declaradas, sejam aquelas opressões cotidianas em que somos vítimas e algozes, parecem não ter fim, são históricas.
Afinal, as guerras estão aí “desde que o homem é homem” e as sociedades são profundamente hierarquizadas desde sempre. Então, que esperança podemos ter para entrarmos em 2024 de cabeça erguida e certos que poderemos avançar rumo a um mundo de paz e sem desigualdades sociais.
Em primeiro lugar, olhando para a história, creio que estamos em melhores condições do que estávamos há 100 anos atras. O que mudou? Quase tudo. A forma como nos relacionamos uns com os outros; em 1923 não poderia passar pela cabeça de ninguém que houvesse um meio de nos comunicarmos instantaneamente com imagem e voz com alguém a centenas de quilômetros de distância.
O tal do conhecimento científico revolucionou o modo de viver, de conhecer, de sonhar, de amar, de trabalhar, … Talvez até tenha extrapolado um pouco, talvez tenhamos que criar algumas amarras, não só para que o conhecimento científico não se transforme na única forma de conhecer, nem que ele exclua toda e qualquer produção cultural que só as pessoas agregadas e o tempo são capazes de produzir.
Penso no conhecimento tradicional dos povos indígenas e descendentes dos africanos que aqui aportaram escravizados, e que, malgrado toda tentativa de aniquilamento cultural e social, conseguiram manter vivas suas tradições. As amarras para segurar a Ciência precisam ser efetivas para que não se possa aniquilar o que ainda resta de conhecimento tradicional. É possível pensar que as plantas nativas possam gerar remédios eficazes para todos? Sim. Mas é preciso que se respeite as populações originárias e que se amplie o acesso aos produtos daí originados. Hoje existe lei no Brasil para a proteção desse conhecimento que, sem dúvida, precisa ainda de desenvolvimento. Através desse exemplo gostaria de mostrar o quanto avançamos de 1923 para cá.
Se em 1923 era impossível declarar sua orientação sexual, diferente da orientação cis-heteronormativa, hoje já não é. Em alguns grupos continua sendo, é bem verdade, mas é cada vez maior a aceitação e o respeito às diferenças sexuais e de gênero. Essa transformação se deveu a muita luta no interior de nossas sociedades democráticas, e ainda precisamos continuar lutando para ampliar os direitos e repararmos as injustiças. Os protagonistas foram as populações LGBTQIAP+, com o apoio de muitos outros grupos.
As hierarquias sociais de gênero, de raça, de classe de renda, de capacidades individuais são opressões que perduram em nossas sociedades e ainda precisam de muita luta para se manter e continuar ampliando o processo de inclusão social.
Ainda estamos muito longe de termos sociedades inclusivas. As centrais (Europa e EUA) cada vez mais xenófobas e aporofóbicas. Nas periféricas, a exploração dos países centrais e a colonialidade de sua elite subserviente, geram pobreza extrema. Enquanto houver pobreza extrema, enquanto houver opressões de gênero e de raça, aporofobia, capacitismo, enquanto não tivermos o compromisso real com a manutenção do planeta para as gerações futuras, sabemos que não teremos justiça social.
Mas temos um ideal de justiça social, esse é o nosso norte, a nossa utopia, como escreveu Galeano. “A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho 10 passos e o horizonte corre 10 passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar” ou como diria Millor Fernandes “A maior utopia é a resistência diária”1.
Essa utopia que nos move não se move sozinha, um ingrediente fundamental é a solidariedade; onde quer que encontremos solidariedade podemos nos aproximar e ampliá-la. Habermas concebe a solidariedade como a “cola” entre os tijolos que formam a arquitetura de nossas instituições políticas e sociais.
Ela não pode ser prescrita mas é o que sustenta nossas sociedades. Prainsack & Buyx2 definiram solidariedade como práticas que expressam a disposição de apoiar outras pessoas com quem reconhecemos similaridade em um aspecto relevante. Reciprocidade e similaridade são ingredientes fundamentais constitutivos da solidariedade. Mas não basta, pensar na solidariedade nesses termos. Daí é importante trazer a Jodi Dean e sua solidariedade relacional reflexiva.
Dean3 identifica três tipos distintos de solidariedade:
- a solidariedade afetiva,
- a solidariedade convencional,
- e a solidariedade reflexiva.
A afetiva é aquela entre pais e filhos entre amigos, a similaridade e a reciprocidade nesse tipo de vínculo são claras. A solidariedade convencional é aquela que surge nos grupos que compartilham valores e interesses. Sejam comunidades morais ou de identidade, mas que se definem como grupo social. A solidariedade reflexiva é definida por Dean “como a expectativa mútua de uma orientação responsável para o relacionamento. Este conceito de solidariedade baseia-se na intuição de que o risco permanente de desacordo deve ele próprio ser transformado racionalmente, de modo a fornecer uma base para a solidariedade. (…) a solidariedade reflexiva torna possível uma forma de consideração pelo outro onde o outro é considerado um membro, apesar da sua diferença”. A solidariedade reflexiva aposta na diferença não só no respeito à diferença, mas na compreensão de que a diferença é fundamental para o desenvolvimento de trocas cooperativas de todos.
Assim queremos convocar a todos para continuarmos as lutas por uma sociedade com menos desigualdades e mais inclusão, sabendo que essa é uma luta solidária, inclusiva e que assim nos aproximamos mais da nossa utopia de um mundo mais justo e inclusivo.
Que 2024 seja o ano do exercício da solidariedade reflexiva, que cada um de nós encontremos ativamente na diferença o que nos complementa e nos ajuda a juntos irmos em frente perseguindo nossas utopias.
É médica pela UFRJ (1983), mestre em Saúde Coletiva pela UERJ (1993) e doutora em Engenharia de Produção pela UFRJ. É presidente da Sociedade de Brasileira de Bioética Regional Rio de Janeiro. É professora titular de Bioética da UFRJ. É diretora do Núcleo de Bioética e Ética Aplicada – NUBEA/CCS/UFRJ. É docente permanente do Programa de Pós-graduação em Bioética, Ética Aplicada e Saúde Coletiva-, em associação das IES UFRJ, FIOCRUZ, UERJ e UFF- PPGBIOS. Pesquisa em Bioética Clínica, Ética em Pesquisa e Ética nas Relações de Trabalho.
Imagem gerada por Inteligência Artificial
- Sugiro a leitura do post de Mouzar Benedito, de 16/01/2019 no blog da Boitempo em https://blogdaboitempo.com.br/2019/01/16/cultura-inutil-para-que-serve-a-utopia/#:~:text=Eduardo%20Galeano%20escreveu%3A%20%E2%80%9CA%20utopia,ela%20se%20afasta%20dois%20passos [↩]
- PRAINSACK, Barbara; BUYX, Alena. Solidarity: reflections on an emerging concept in bioethics. London: Nuffield Council on Bioethics, 2011 [↩]
- DEAN, Jodi. Feminist solidarity, reflective solidarity: Theorizing connections after identity politics. Women & Politics, 1998, 18.4: 1-26 [↩]