Com 29 semanas de gestação, a jornalista Amanda Hess recebeu uma notícia que mudaria sua forma de pensar sobre a maternidade: algo no ultrassom preocupava o médico. Começava ali uma jornada de exames, angústias e incertezas. O filho de Hess seria diagnosticado com a síndrome de Beckwith-Wiedemann — uma condição genética rara que, embora tratável, carregava consigo riscos e estigmas.
Mas Second Life: ter um filho na era digital, seu livro recém-publicado, vai além do relato pessoal. É uma crítica contundente à cultura do controle total sobre a gestação, alimentada por tecnologias de rastreamento, testes genéticos e uma ideologia de otimismo técnico que promete mais do que pode entregar.
A armadilha do excesso de informação
Após o ultrassom suspeito, Hess se submeteu a uma amniocentese e, em seguida, a uma ressonância magnética. O segundo parecer médico indicava um cenário catastrófico — que depois se provou equivocado. O terceiro diagnóstico, mais ponderado, ofereceu o suporte necessário: encaminhamento para um especialista na síndrome e acesso a uma UTI neonatal apropriada.
Mesmo com todos esses recursos, o sentimento de culpa era inevitável. Seu prontuário continha termos como “idade materna avançada”, “exposição a teratógenos” (por uma única dose do ansiolítico Ativan no início da gestação) e “ansiedade durante a gravidez”. Nenhum desses fatores explicava a condição do filho, mas todos pareciam colar em Hess um selo de responsabilidade, como se seu corpo tivesse cometido um erro.
Essa documentação não produzia conhecimento real sobre o bebê, mas reforçava um imaginário antigo: o da mulher como transmissora de traumas e imperfeições ao feto.
A sombra da “impressão materna”
Esse imaginário tem raízes históricas profundas. No passado, acreditava-se que pensamentos e emoções da gestante podiam “marcar” negativamente o corpo do bebê — uma ideia conhecida como “impressão materna”. A historiadora Hannah Zeavin observa que, nos manuais médicos antigos, a mulher grávida era vista como uma espécie de “máquina de inscrição psíquica”.
Para Hess, essa ideia reverbera nos termos médicos ainda usados hoje. “Teratógeno” — cujo radical significa “monstro” — é um exemplo eloquente. Ao decodificar a linguagem médica do seu prontuário, ela se viu descrita como alguém que “criou um monstro”. E tudo isso por conta de uma dose de medicação aprovada, tomada durante um momento de ansiedade.
A tecnologia como espelho — e distorção
Second Life é também uma reflexão sobre o modo como a experiência da maternidade foi mediada por telas. De aplicativos de monitoramento da gravidez a babás eletrônicas e algoritmos que sugerem o que esperar do bebê, Hess viu sua jornada ser constantemente atravessada por dispositivos que prometem previsibilidade — mas entregam ansiedade.
Um exemplo é o movimento “freebirth”, que Hess conheceu através do celular. Compostos por mulheres que rejeitam o modelo médico de pré-natal e partos hospitalares, essas comunidades veem a assistência médica como “prisão”. Embora Hess não compartilhasse dessa visão, ela reconhecia a tentação: “Se eu tivesse tido uma gravidez selvagem, talvez nunca tivesse feito aquele ultrassom aterrorizante.”
Mas ela também sabe que, sem o diagnóstico, talvez não tivesse conseguido garantir o cuidado necessário para seu filho após o nascimento. A tecnologia, portanto, não é vilã nem salvadora — mas um campo de tensões, decisões difíceis e desigualdade.
O outro extremo: bebês projetados
Do outro lado desse espectro, startups como Genomic Prediction e Orchid oferecem serviços de triagem genética de embriões para pessoas que realizam fertilização in vitro. Avaliam propensão a doenças, transtornos mentais e até, supostamente, QI. Não estamos falando ainda de edição genética via CRISPR — o que permanece proibido —, mas de uma forma de “curadoria genética”.
A lógica é clara: prevenir sofrimentos futuros e maximizar potencialidades. Mas a quem essa promessa serve? E com que riscos?
Sam Altman (OpenAI), Stephen Hsu (Genomic Prediction) e Anne Wojcicki (23andMe) são apenas alguns dos nomes envolvidos nessa nova fronteira da reprodução. Noor Siddiqui, da Orchid, resumiu a filosofia com uma frase provocativa: “Sexo é para diversão; triagem de embriões é para ter filhos.”
Eugenia aveludada?
Para muitas famílias, essas ferramentas são inalcançáveis — e talvez, por isso, seus dilemas éticos permaneçam invisíveis. Mas mesmo testes genéticos mais acessíveis, como os exames de sangue no primeiro trimestre da gravidez, já se tornaram rotina e têm efeitos profundos.
Como observa Hess, os materiais de divulgação da empresa Natera — que oferece um dos exames mais populares, o Panorama — omitem imagens de crianças com as condições que os testes visam detectar. A mensagem implícita é clara: caso o exame aponte alguma anomalia, o esperado é que a gestação seja interrompida.
A ativista Jessica Slice, em Pais Inadaptados: Uma Mãe Deficiente Desafia um Mundo Inacessível, aponta que esse tipo de decisão, ainda que legal e pessoal, é influenciado por uma lógica capacitista e pela pressão social para se evitar qualquer forma de diferença. Ela e Hess defendem o direito ao aborto, mas também questionam como o avanço da triagem genética pode reforçar um ideal normativo de perfeição.
A bioeticista Rosemarie Garland-Thomson chama esse fenômeno de “eugenia de veludo”: um processo aparentemente voluntário, mas permeado por normas invisíveis sobre o que significa nascer “normal”.
A desigualdade reprodutiva nos EUA
Nos Estados Unidos pós-Dobbs, onde o direito ao aborto foi drasticamente limitado em diversos estados, esse cenário adquire tons ainda mais sombrios. Enquanto mulheres ricas podem recorrer a clínicas privadas e selecionar embriões conforme seus critérios, outras enfrentam barreiras legais e financeiras para interromper a gravidez — mesmo diante de diagnósticos graves.
Essa assimetria revela que o problema não está apenas no que a tecnologia permite, mas no que ela nega: o direito de decidir com liberdade, dignidade e amparo. Não à toa, Hess conclui que o que está em jogo não é só o que os pais desejam saber sobre seus filhos, mas o que eles se sentem obrigados a decidir com base em algoritmos, imagens e testes.
A fantasia do filho perfeito
Casais como os Collins — defensores ferrenhos do pro-natalismo e usuários de triagem genética para selecionar embriões — representam a face mais radical dessa tendência. Em nome de um “projeto de eficiência genética”, minimizam o cuidado pós-nascimento e encaram os filhos como produtos de investimento. O estilo parental é o oposto do tradicional: permissivo, solitário e, por vezes, punitivo.
Apesar das aparências, não estão tão distantes dos movimentos “freebirth”, com os quais compartilham o desejo de controle absoluto, ainda que por vias opostas. Em ambos os casos, a criança deixa de ser um fim em si e passa a ser meio: de validação, de ideologia, de status.
O filho como mistério, não projeto
Na contramão dessa lógica, Hess afirma algo essencial: “Ter filhos não é compatível com o desejo de controlar e otimizar todos os aspectos da vida.” Crianças frustram expectativas, subvertem diagnósticos, revelam caminhos inesperados. É isso que torna a parentalidade significativa.
Seu livro é uma homenagem ao filho que nasceu com um diagnóstico temido e que, contra todas as probabilidades estatísticas, trouxe alegria e sentido. “Passado: eu via o diagnóstico como tragédia; presente: eu sei que tragédia não houve.”
Conclusão: o que é moralmente aceitável desejar?
As tecnologias de reprodução e triagem genética nos forçam a encarar uma pergunta incômoda: o que é moralmente aceitável querer ao desejar um filho?
Buscar informação não é errado. Mas a forma como a usamos — e o que fazemos com o poder de decidir — é o verdadeiro dilema bioético. Nem o fetichismo da natureza nem o culto da performance genética oferecem uma resposta satisfatória. Entre o horror à diferença e o ideal de perfeição, talvez o mais revolucionário seja simplesmente aceitar o desconhecido. Esperar, com amor, por quem está a caminho.
Fonte: How much should you know about your child before he’s born? / The New Yorker
Imagem gerada por Inteligência Artificial
Este artigo foi criado em colaboração entre Cláudio Cordovil e Chat GPT-4