Desde, talvez, os primórdios da humanidade, foram criados códigos de leis com o propósito de mediar as relações entre os homens e o campo social no qual ele está inserido. Por mais que estejamos prontos e determinados a repudiar ações como alguns experimentos que levam à crueldade, a história da humanidade atesta a necessidade de reflexão acerca das consequências das nossas ações por mais benéficas que tais ações possam parecer. .
Diante de um cenário de experiências médicas desumanas, cruéis e até mortais realizadas pelos cientistas de Hitler com prisioneiros dos campos de concentração, durante a Segunda Guerra Mundial1, (sem dúvida relações interpessoais no campo social, mediada por costumes, moral, leis e sistemas religiosos, assim como as relações dos profissionais de saúde com seus pacientes) é preciso refletir, tal como no código de Nuremberg, acerca das melhores condições em que as experiências e a assistência devem ocorrer. Garantir a autonomia do paciente é algo que está presente desde as primeiras regulamentações. E, especialmente, com o avanço tecnológico a partir do século 20, o adiamento da morte, a distanásia, passa a ser objeto dessa reflexão.
Num primeiro momento, é criada a Bioética, com o propósito de relacionar a ciência empírica às ciências humanas, fazendo um elo onde o positivismo fez uma fratura. Os anos 1960 e 1970 foram marcados por intensos debates públicos e críticas voltadas não só para as problemáticas em torno da ética em pesquisa e os abusos cometidos, mas também para as questões éticas relacionadas à assistência em saúde, principalmente pela intensa utilização de novas tecnologias2.
Em seguida: A Bioética Clínica surge com Andre Hellegers, relacionada às decisões éticas na prática médica[…].3.
Ou nas palavras de Levi e Leme Barros:
Trata a ética clínica das condutas desejáveis no âmbito da relação que se forma entre o profissional da área da saúde e seus pacientes, criando-se, com isso, condições para que, por um lado, os valores pessoais dos seres humanos envolvidos sejam preservados e respeitados e, por outro, a prestação de serviço que constitui o objeto especial dessa relação possa alcançar a máxima eficácia possível4.
A Bioética Clínica procurar analisar situações clínicas que envolvem decisões sobre as intervenções clínicas naqueles que estão sob cuidado em estabelecimentos de saúde, com o objetivo de assegurar a dignidade, a autonomia e a liberdade de cada um envolvido na relação, a qual é atravessada pela instituição de saúde, seja hospitalar ou atenção primária,
A tríade (equipe de saúde/ pacientes/instituição) muito se beneficia da Bioética Clínica, ferramenta fundamental na tomada de decisão. A saúde em sua integralidade, a dignidade, a vida devem ser elementos centrais, para não cairmos na objetificação daqueles de quem cuidamos, tomando-lhes a humanidade. .
A Bioética Clínica busca estimular uma sistematização multidimensional, inter e transdisciplinar, contribuindo para que os benefícios da Ciência aconteçam em equilíbrio com as exigências da humanização5.
A Bioética Clínica faz o imprescindível papel onde a fragilidade humana se apresenta em todas as suas facetas – na doença, ela, a Bioética Clínica é capaz de aproximar todos os envolvidos, pelo sentimento de pertencimento6 , a um tratamento humanizado, respeitoso, horizontal.
Comissões de Bioética Clínica (CBC)
Trata-se de instância na qual participam profissionais de saúde e de outras áreas, como teólogos, juristas e filósofos, bem como representantes dos usuários e da comunidade, sendo multiprofissional e multidisciplinar. Sua proposta é constituir-se como espaço plural e dialógico, que valorize todos os atores na busca por soluções de conflitos no cenário da saúde2.
Como enfatizam Francisconi, Goldin e Lopes, os Comitês de Bioética tem uma tríplice função: educativa, consultiva e normativa. Podem ser hospitalares ou não. Na atenção primária os comitês de Bioética podem trabalhar com equipes de saúde promovendo reflexões e discussões sobre como enfrentar dilemas como fim de vida ou das situações de violência nas comunidades ou dos conflitos geracionais e culturais.7
Alguns aspectos dos Comitês que gostaríamos de salientar dizem respeito:
– à sua composição, que deve ser diversificada em termos de gênero, raça/cor, profissional da saúde e de fora da saúde, representante da comunidade/movimentos sociais;
Quanto à decisão de um caso o CBC não deve decidir acerca das melhores opções de tratamento, mas pode ser um mediador em um caso atual, intervindo de forma a possibilitar que todas as partes possam se ouvir e chegar aos melhores resultados; pode ainda exarar recomendações de casos atuais ou de casos pretéritos contribuindo com o aprimoramento das discussões éticas e da capacidade dos atores envolvidos em cada caso e da própria comissão para tomada de decisão ética. Com o amadurecimento do CBC, poderá ser um serviço capaz de fornecer pareceres éticos para casos específicos sob demanda.
Quanto a sua influência na instituição, o Comitê ou comissão precisa ser uma instância reconhecida e aceita por todos – para isso é essencial que o processo de criação das comissões seja ancorada em muita participação de todos os níveis hierárquicos com apoio decisivo das direções, mas que fique clara sua independência. O CBC é uma instância dinamizadora das discussões éticas no estabelecimento, podendo inclusive extrapolar , caso haja formação específica, para auxiliar o estabelecimento na gerência com o instrumental da ética organizacional ou da bioética institucional.
Assim, a expansão da Bioética no Brasil pode muito se beneficiar da expansão dos Comitês de Bioética Clínica, promovendo o desenvolvimento de métodos de tomada de decisão ética melhores, conforme a diversidade de envolvidos e situações a analisar. A dinâmica própria de um CBC favorece a produção científica da área e o desenvolvimento dos conceitos e teorias capazes de auxiliar população e profissionais de saúde em suas difíceis decisões.
Como ponto de partida um programa de formação para membros de CBC poderá ser criado pela Sociedade Brasileira de Bioética, com o objetivo de por em movimento processos de animação para estimular essas CBC. Alem disso convém pensar também em critérios de avaliação do funcionamento dos CBC para que a população possa também acompanhar essas novidades e as mudanças que o corpo social do estabelecimento de saúde possa empreender através dos mesmos.
Este é um primeiro chamado à participação, Venham debater conosco! Temos eventos e propostas para desenvolver e prometemos o acolhimento de todos os interessados para montarmos um programa potente de transformação.
A SBBRio através de sua Comissão Temática da Bioética Clínica apoia os projetos que visem à implantação, desenvolvimento e avaliação de Comissões de Bioética Clínica em instituições de saúde, em seus mais diversos níveis de atendimento.
Bibliografia
FREUD, S. Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Trad. sob direção de Jayme Salomão. – Ed. standard brasileira – Rio de Janeiro: Imago, 1980. Texto: O Mal-estar na Civilização (1930). Vol. XXI.
GIRARD, R. A Violência e o Sagrado. Trad. André Langer. São Paulo: Paz e Terra, 2008.
KEID, F.B. Bioética Clínica como Parte Integrante de uma Medicina dos Valores e Afetos. Revista Binacional Brasil Argentina. Vol. 10, num. 2, dez/2021, p. 40 – 52. Disponível em: https://periodicos2.uesb.br/index.php/rbba/article/view/9895/6332 Acesso em: 24 out 2023.
Graduado em medicina pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1991), graduado em filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2010), mestre em Ciências Médicas pela Universidade Federal Fluminense (2002) e doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2013). Vice-Diretor do Núcleo de Bioética e Ética Aplicada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (NUBEA). Docente Permanente do PPG em Bioética, Ética Aplicada e Saúde Coletiva (PPGBIOS). Coordenador das Comissões de Bioética Clínica dos Hospitais da UFRJ. Coordenador do GT de Bioética Clínica da Sociedade Brasileira de Bioética – Regional do RJ (SBBRio)
- HOLOCAUST ENCYCLOPEDIA. As Experiências Médicas Nazistas. Disponível em: https://encyclopedia.ushmm.org/content/pt-br/article/nazi-medical-experiments Acesso em: 25 out 2023 [↩]
- MARINHO, S.; COSTA, A.; PALÁCIOS, M.; RÊGO, S. Implementação de Comitês de Bioética em Hospitais Universitários Brasileiros: dificuldades e viabilidades. Rev. bioét. (imp.). 2014, 22(1): 105-15. Disponível em: https://revistabioetica.cfm.org.br/revista_bioetica/article/view/887/980 Acesso em: 25 out 2023 [↩] [↩]
- FIGUEIREDO, A.M.de. Bioética clínica e sua prática. Rev. bioét (impr.). 2011; 19(2): 343 – 58. Disponível em: https://revistabioetica.cfm.org.br/revista_bioetica/article/view/632/659 Acesso em: 24 out 2023 [↩]
- LEVI, C.G,; LEME DE BARROS, A.O. Ética Clínica: a AIDS como paradigma. In COSTA, S.I.F.; OSELKA, G.; GARRAFA, V. Iniciação à Bioética. Brasília: CFM, 1978 [↩]
- OSELKA, Gabriel (coord.). Bioética Clínica: reflexões e discussões sobre casos escolhidos. 3.ed. São Paulo: Conselho de Medicina do Estado de São Paulo. Centro de Bioética, 2009 [↩]
- JONAS, H. O Princípio Responsabilidade: ensaio de uma ética para civilização tecnológica. Trad. Marijane Lisboa e Luiz Barros Montez. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006 [↩]
- FRANCISCONI CF, GOLDIM JR, LOPES MHI. O papel dos Comitês de Bioética na humanização da assistência à saúde. Rev. bioét.(Impr.). [Internet]. 3º de novembro de 2009 [citado 26º de outubro de 2023];10(2). Disponível em: https://revistabioetica.cfm.org.br/revista_bioetica/article/view/219 [↩]