A história da pesquisa clínica no mundo traz exemplos de barbárie provocadas pela convicção de que era possível promover o sofrimento e, até a morte, de pessoas em nome de avanços científicos que resultariam em melhor qualidade de vida para a humanidade.
O debate ético realizado sob o Código de Nuremberg levantou a questão sobre o direito de impor, em nome de novas descobertas científicas, a desumanidade realizada nos campos de concentração. Em um mundo marcado pela desigualdade social, o valor da vida humana tem níveis diferenciados de importância e embora os casos acontecidos durante a Segunda Guerra Mundial nos causem horror, ainda hoje, o valor diferenciado entre vidas é realidade e se aplica no mundo científico tanto individualmente quanto para os países periféricos.
Diante deste quadro a regulação ética ocupa um espaço fundamental na pesquisa com seres humanos. Várias iniciativas mundiais foram criadas dentre elas, podemos citar a Declaração de Helsinque (1964) e o Relatório Belmont (1978) que no Brasil foi a base da Resolução 196/96 que fundou o Sistema CEP/Conep.
O sistema tem sua origem nas lutas que derrubaram a ditadura militar; momento em que os movimentos sociais e sindicais organizados obtiveram significativos avanços, como, por exemplo, a instalação de um Sistema Único de Saúde – o SUS. Este sistema é sustentando pelo Conselho Nacional de Saúde que é composto por 19 comissões que tratam de questões relacionadas a saúde e onde a sociedade civil tem participação efetiva.
Uma destas comissões é a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa – CONEP que coordena o sistema de regulação ética das pesquisas que envolvem seres humanos. Sua função precípua é a garantia de segurança ao participante de pesquisa a partir de critérios éticos, baseados no respeito a autonomia, no balanço positivo entre riscos e benefícios e na justiça social. Por quase 30 anos, o Sistema CEP/Conep tem envidado esforços para contribuir com a pesquisa científica no Brasil, buscando a eticidade e a integridade da pesquisa e a proteção do seu participante.
O PL 7082/17
No entanto, desde 2015 tramita no parlamento brasileiro um Projeto de Lei que não reconhece o Sistema CEP/Conep e pretende criar um novo sistema vinculado ao Ministério da Saúde, afastando a regulação ética do controle social. Este fator é fundamental para entender o intuito deste projeto, que também não apresenta dentre suas prioridades a participação efetiva da representação de usuário.
O papel central do atual Sistema CEP/Conep é a regulação ética com o foco na proteção do participante de pesquisa. Para isso, tem como premissa básica a sua submissão ao controle social e a presença permanente da representação de usuários do SUS tanto nos CEP’s quanto na Conep. Sob a égide da proteção ao participante de pesquisa, o atual Sistema não tergiversa tanto na proibição do uso de placebo; quanto na exigência de metodologias que garantam a anonimização de dados da pesquisa e o pleno conhecimento dos fins e autorização do participante para o uso de dados ou de material humano depositados em biobancos.
Os defensores do projeto argumentam que o atual sistema é gerido por norma infralegais e que seriam necessárias regras legais que impusessem segurança jurídica. Alegam ainda que o Conselho Nacional de Saúde não tem estrutura adequada para assumir funções de alta tecnicidade, o que faz com que o atual sistema seja ineficiente, anacrônico, distorcido e moroso. Ao passo que, vinculado ao Poder Executivo, poderia contar com a estrutura governamental e corrigir estes problemas. Ora, dificuldades para operar um sistema com 888 CEP e 15774 pessoas envolvidas, sem dúvida estão presentes, mas será que a forma de resolver as dificuldades do sistema é afastá-lo do controle social, destruí-lo para criar outro sob o risco das alternâncias de poder e do jogo político, por vezes, crivado de interesses escusos?
Mas, vão além quando tratam de forma fluida que permite interpretações diversas em temas que garantem a proteção do participante, de dados de pesquisa e material humano dos biobancos. E, confirmando a secundarização da preocupação com o participante de pesquisa, flexibiliza a obrigatoriedade do fornecimento de medicamento experimental após a pesquisa. Em suma, o novo sistema estaria em constante risco de funcionar ao sabor dos interesses da indústria, onde a preocupação com a função social da pesquisa e a segurança do seu participante não estariam entre suas prioridades.
Desde a origem, o Projeto de Lei pende para os interesses da indústria farmacêutica, numa associação com a Interfarma. Talvez o ponto que mais explicita isto é o fornecimento de medicamento experimental pós-estudo. Segundo o projeto, este pode ser suspenso, caso sua distribuição afete a viabilidade de seu ensaio clínico; prevê a limitação do tempo para o acesso, relacionando-o à disponibilidade comercial, por considerar que sua obrigatoriedade pode desestimular novas iniciativas de pesquisa e desenvolvimento de fármacos inovadores. Por fim, considera que a responsabilidade com a saúde é dos governos e que durante o ensaio clínico esta deva ser compartilhada com a indústria. Contudo, ao término do estudo, a responsabilidade deve retornar aos governos.
A pesquisa científica e, no caso tratado aqui, a pesquisa clínica, têm um papel decisivo no desenvolvimento de um país. São muitas variáveis envolvidas no processo e, sem dúvida, a proteção do participante de pesquisa é uma delas e tem um significado mais amplo que só a proteção individual do ser humano. Num país de capitalismo periférico, tal qual o Brasil, a importância da proteção de fronteiras é primordial para as políticas de desenvolvimento. Os grupos econômicos instalados na indústria farmacêutica demandam do governo atitudes que facilitem a realização de seus projetos, sem considerar o desenvolvimento e a segurança da população daquele país.
No Brasil, as universidades e os institutos de pesquisa públicos são os loci de realização das pesquisas. As mudanças implementadas neste campo nas últimas décadas têm estabelecido um novo padrão de pesquisa que altera a atividade científica, trazendo a pesquisa e desenvolvimento e inovação para o lugar da ciência e tecnologia, ou seja, priorizando, por necessidade de financiamento privado, as intenções do mercado em detrimento da histórica função social das atividades de pesquisa desenvolvida nas instituições públicas.
Contexto fértil para o conflito de interesse: o interesse de quem financia a pesquisa é a prioridade; o grupo de pesquisa precisa atender ao que é demandando, enfraquecendo sua autonomia acadêmica; hospitais universitários são espaços privilegiados de pesquisa clínica e de recrutamento de público-alvo; este, por sua vez, submetido a uma lista de vulnerabilidades sociais e ao poder médico, nem sempre consegue exercer plenamente sua autonomia, o que é premissa básica para a eticidade da pesquisa.
Conclusão
Este é o contexto em que surge a proposta de desconsiderar o Sistema CEP/Conep que há quase 30 anos regula eticamente as pesquisas no país e que enfrentou a pandemia de Covid-191 num efervescente movimento nas instituições públicas de busca de novas descobertas para freá-la e reestabelecer a saúde física e mental da população. É mister que o sistema seja melhorado. No entanto, não é retirando o controle ético da atividade de pesquisa que envolve seres humanos do controle social que vamos obter avanços.
Muito pelo contrário, a segurança do participante de pesquisa e da atividade de pesquisa cujo propósito seja o desenvolvimento autônomo e profícuo da ciência fica ameaçado. A regulação ética realizada pelo controle social é o que pode garantir a proteção da pesquisa e do seu participante, em detrimento dos interesses de mercado.
Graduado em medicina pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1991), graduado em filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2010), mestre em Ciências Médicas pela Universidade Federal Fluminense (2002) e doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2013). Vice-Diretor do Núcleo de Bioética e Ética Aplicada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (NUBEA). Docente Permanente do PPG em Bioética, Ética Aplicada e Saúde Coletiva (PPGBIOS). Coordenador das Comissões de Bioética Clínica dos Hospitais da UFRJ. Coordenador do GT de Bioética Clínica da Sociedade Brasileira de Bioética – Regional do RJ (SBBRio)
- Segundo a página da Conep, do dia 17 de fevereiro de 2020 até o dia 02 de julho de 2022, a Conep aprovou 377 protocolos intervencionais/experimentais relacionados ao coronavírus e/ou à Covid-19 [↩]