O PL 7082/17 e a ameaça à regulação ética da pesquisa clínica

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Alexandre da Silva Costa

A história da pesquisa clínica no mundo traz exemplos de barbárie provocadas pela convicção de que era possível promover o sofrimento e, até a morte, de pessoas em nome de avanços científicos que resultariam em melhor qualidade de vida para a humanidade. 

O debate ético realizado sob o Código de Nuremberg levantou a questão sobre o direito de impor, em nome de novas descobertas científicas, a desumanidade realizada nos campos de concentração. Em um mundo marcado pela desigualdade social, o valor da vida humana tem níveis diferenciados de importância e embora os casos acontecidos durante a Segunda Guerra Mundial nos causem horror, ainda hoje, o valor diferenciado entre vidas é realidade e se aplica no mundo científico tanto individualmente quanto para os países periféricos.

Diante deste quadro a regulação ética ocupa um espaço fundamental na pesquisa com seres humanos. Várias iniciativas mundiais foram criadas dentre elas, podemos citar a Declaração de Helsinque (1964) e o Relatório Belmont (1978) que no Brasil foi a base da Resolução 196/96 que fundou o Sistema CEP/Conep.

O sistema tem sua origem nas lutas que derrubaram a ditadura militar; momento em que os movimentos sociais e sindicais organizados obtiveram significativos avanços, como, por exemplo, a instalação de um Sistema Único de Saúde – o SUS. Este sistema é sustentando pelo Conselho Nacional de Saúde que é composto por 19 comissões que tratam de questões relacionadas a saúde e onde a sociedade civil tem participação efetiva. 

Uma destas comissões é a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa – CONEP que coordena o sistema de regulação ética das pesquisas que envolvem seres humanos. Sua função precípua é a garantia de segurança ao participante de pesquisa a partir de critérios éticos, baseados no respeito a autonomia, no balanço positivo entre riscos e benefícios e na justiça social.  Por quase 30 anos, o Sistema CEP/Conep tem envidado esforços para contribuir com a pesquisa científica no Brasil, buscando a eticidade e a integridade da pesquisa e a proteção do seu participante. 

O PL 7082/17

No entanto, desde 2015 tramita no parlamento brasileiro um Projeto de Lei que não reconhece o Sistema CEP/Conep e pretende criar um novo sistema vinculado ao Ministério da Saúde, afastando a regulação ética do controle social. Este fator é fundamental para entender o intuito deste projeto, que também não apresenta dentre suas prioridades a participação efetiva da representação de usuário. 

O papel central do atual Sistema CEP/Conep é a regulação ética com o foco na proteção do participante de pesquisa.  Para isso, tem como premissa básica a sua submissão ao controle social e a presença permanente da representação de usuários do SUS tanto nos CEP’s quanto na Conep.  Sob a égide da proteção ao participante de pesquisa, o atual Sistema não tergiversa tanto na proibição do uso de placebo; quanto na exigência de metodologias que garantam a anonimização de dados da pesquisa e o pleno conhecimento dos fins e autorização do participante para o uso de dados ou de material humano depositados em biobancos.

Os defensores do projeto argumentam que o atual sistema é gerido por norma infralegais e que seriam necessárias regras legais que impusessem segurança jurídica.  Alegam ainda que o Conselho Nacional de Saúde não tem estrutura adequada para assumir funções de alta tecnicidade, o que faz com que o atual sistema seja ineficiente, anacrônico, distorcido e moroso. Ao passo que, vinculado ao Poder Executivo, poderia contar com a estrutura governamental e corrigir estes problemas. Ora, dificuldades para operar um sistema com 888 CEP e 15774 pessoas envolvidas, sem dúvida estão presentes, mas será que a forma de resolver as dificuldades do sistema é afastá-lo do controle social, destruí-lo para criar outro sob o risco das alternâncias de poder e do jogo político, por vezes, crivado de interesses escusos?

Mas, vão além quando tratam de forma fluida que permite interpretações diversas em temas que garantem a proteção do participante, de dados de pesquisa e material humano dos biobancos. E, confirmando a secundarização da preocupação com o participante de pesquisa, flexibiliza a obrigatoriedade do fornecimento de medicamento experimental após a pesquisa.  Em suma, o novo sistema estaria em constante risco de funcionar ao sabor dos interesses da indústria, onde a preocupação com a função social da pesquisa e a segurança do seu participante não estariam entre suas prioridades.

Desde a origem, o Projeto de Lei pende para os interesses da indústria farmacêutica, numa associação com a Interfarma. Talvez o ponto que mais explicita isto é o fornecimento de medicamento experimental pós-estudo. Segundo o projeto, este pode ser suspenso, caso sua distribuição afete a viabilidade de seu ensaio clínico; prevê a limitação do tempo para o acesso, relacionando-o à disponibilidade comercial, por considerar que sua obrigatoriedade pode desestimular novas iniciativas de pesquisa e desenvolvimento de fármacos inovadores. Por fim, considera que a responsabilidade com a saúde é dos governos e que durante o ensaio clínico esta deva ser compartilhada com a indústria. Contudo, ao término do estudo, a responsabilidade deve retornar aos governos.

A pesquisa científica e, no caso tratado aqui, a pesquisa clínica, têm um papel decisivo no desenvolvimento de um país.  São muitas variáveis envolvidas no processo e, sem dúvida, a proteção do participante de pesquisa é uma delas e tem um significado mais amplo que só a proteção individual do ser humano.  Num país de capitalismo periférico, tal qual o Brasil, a importância da proteção de fronteiras é primordial para as políticas de desenvolvimento.  Os grupos econômicos instalados na indústria farmacêutica demandam do governo atitudes que facilitem a realização de seus projetos, sem considerar o desenvolvimento e a segurança da população daquele país. 

No Brasil, as universidades e os institutos de pesquisa públicos são os loci de realização das pesquisas.  As mudanças implementadas neste campo nas últimas décadas têm estabelecido um novo padrão de pesquisa que altera a atividade científica, trazendo a pesquisa e desenvolvimento e inovação para o lugar da ciência e tecnologia, ou seja, priorizando, por necessidade de financiamento privado, as intenções do mercado em detrimento da histórica função social das atividades de pesquisa desenvolvida nas instituições públicas.

Contexto fértil para o conflito de interesse:  o interesse de quem financia a pesquisa é a prioridade; o grupo de pesquisa precisa atender ao que é demandando, enfraquecendo sua autonomia acadêmica; hospitais universitários são espaços privilegiados de pesquisa clínica e de recrutamento de público-alvo; este, por sua vez, submetido a uma lista de vulnerabilidades sociais e ao poder médico, nem sempre consegue exercer plenamente sua autonomia, o que é premissa básica para a eticidade da pesquisa.

Conclusão

Este é o contexto em que surge a proposta de desconsiderar o Sistema CEP/Conep que há quase 30 anos regula eticamente as pesquisas no país e que enfrentou a pandemia de Covid-191 num efervescente movimento nas instituições públicas de busca de novas descobertas para freá-la e reestabelecer a saúde física e mental da população.  É mister que o sistema seja melhorado. No entanto, não é retirando o controle ético da atividade de pesquisa que envolve seres humanos do controle social que vamos obter avanços.

Muito pelo contrário, a segurança do participante de pesquisa e da atividade de pesquisa cujo propósito seja o desenvolvimento autônomo e profícuo da ciência fica ameaçado. A regulação ética realizada pelo controle social é o que pode garantir a proteção da pesquisa e do seu participante, em detrimento dos interesses de mercado.


Imagem de Tatiana por Pixabay

  1. Segundo a página da Conep, do dia 17 de fevereiro de 2020 até o dia 02 de julho de 2022, a Conep aprovou 377 protocolos intervencionais/experimentais relacionados ao coronavírus e/ou à Covid-19 []

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