Bioética e justiça reprodutiva: a justiça para além do princípio*

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Karina Caetano

Embora a bioética seja o campo epistemológico e o movimento social mais diretamente vinculado ao combate à eugenia e trate amplamente de todas as nuances relativas aos direitos reprodutivos e das questões da sexualidade, antirracistas e feministas estão quase ausentes das discussões nos fóruns de bioética no mundo, embora sejam setores que desde os anos sessenta desenvolvem duras críticas à forma como a ciência vem sendo realizada! (OLIVEIRA, 1995)

Os eventos associados à vida reprodutiva humana são repletos de complexidades e, por vezes, temas de disputas sociais e políticas. Esses debates, usualmente, conflitam com as agendas das pessoas que menstruam, gestam, parem e abortam, as quais deveriam estar no centro da promoção de políticas públicas e saberes científicos sobre o tema. Nesse cenário, a justiça reprodutiva é uma ferramenta que possibilita refletir sobre as constantes ameaças aos direitos sexuais e reprodutivos de meninas, mulheres, homens trans, pessoas transmasculinas, não bináries e intersexuais que têm útero. Essa perspectiva possibilita abordar o tema a partir
das interseccionalidades de raça, gênero, classe e outras identidades transformadas em formas de opressão.

A Declaração Universal Sobre Bioética e Direitos Humanos (Unesco, 2005), em seu artigo 10°, pauta a questão da igualdade, da justiça e da equidade como condição para o acesso à direitos e à dignidade. Desde a redemocratização, o Brasil adotou um posicionamento de adesão ao sistema internacional de direitos humanos e, consequentemente, aos direitos sexuais e direitos reprodutivos (GONZAGA, 2021), reconhecendo determinados aspectos das políticas sexuais (CORRÊA E KALIL, 2020). Em países do Sul Global como o nosso, onde a colonialidade estabeleceu desigualdades estruturais, a justiça, para além de um princípio bioético, é uma condição para a vida. Porém, temas polemizados em disputas políticas e religiosas, como é o caso do aborto, ou se mantiveram estagnados, ou são constantemente ameaçados, até mesmo para os casos previstos em lei (VITORIA, 2024).

Assim, subtrai-se não apenas as possibilidades de alcançar direitos sexuais e reprodutivos, mas afastam as pessoas em maiores situações de vulnerabilidade de gozar dos princípios de equidade, integralidade e universalidade, que dão sustento ao Sistema Único de Saúde (SUS). Nesse contexto, a justiça ganha preponderância, afinal, quem são as pessoas que morrem por violação dos direitos sexuais e reprodutivos no Brasil? A Pesquisa Nacional do Aborto (DINIZ et al, 2021) indicou que 52% das mulheres entrevistadas tinham 19 anos ou menos quando fizeram o primeiro aborto, além disso, as taxas mais altas foram detectadas nas mulheres com menor escolaridade, negras e indígenas e residentes em regiões mais pobres do país, sendo também essas as mulheres mais afetadas por complicações decorrentes da sua criminalização. Outro exemplo relevante é que, em cenários de Emergência em SaúdePública, como foi o caso da pandemia da COVID-19, a mortalidade materna pela enfermidade foi duas vezes maior para mulheres negras quando comparada com as mulheres brancas (SOUZA, AMORIM, 2021).

Fátima Oliveira, uma bioeticista pioneira nos debates sobre genética, saúde da mulher e saúde da população negra no Brasil (ARRUDA, 2021), considerava a bioética como um campo de disputa social e epistemológica. Ao pesquisar os direitos reprodutivos, observou pouca notabilidade por parte dos movimentos feministas e antirracistas (OLIVEIRA, 1995, 2001). Nesse sentido, a autora ressaltou a necessidade desses movimentos atuarem na bioética no intuito de “superar a velha ética, originariamente racista, machista e até anti-mulher, para assim assegurar a construção de uma ética nova: não sexista, anti-racista e libertária” (OLIVEIRA, 1995, página 76).

Débora Diniz e Dirce Guilhem (2002) também disputam o campo da bioética e, para tanto, fazem uma crítica à teoria principialista, propondo repensar o campo epistemológico para além da autonomia, beneficência, não maleficência e justiça. As autoras consideram que o principialismo pressupõe “um indivíduo livre de constrangimentos sociais, esquecendo que em contextos de desigualdade social não é possível o exercício pleno da liberdade” (DINIZ, GUILHEM, 2002, p. 32) e, nesse ponto, destacam a negligência da bioética à importância do princípio que mais considera as condições de desigualdades e privilégios, ou seja, o apagamento da justiça em detrimento dos demais princípios.

Frente a isso, a fim de discutir a questão dos direitos sexuais e reprodutivos e seus respectivos dilemas bioéticos, destacamos o conceito de justiça reprodutiva (LOPES, 2022), por abranger as múltiplas opressões que atingem as meninas, mulheres e pessoas capazes de gestar e parir, independente das suas escolhas quanto à maternidade, se sofreram uma perda gestacional ou se optaram pela interrupção da gestação.

Dessa forma, o conceito contribui para a compreensão da diversidade das demandas relacionadas à saúde sexual e reprodutiva e vai além, compatibilizando agendas relacionadas à maternidade, ao aborto, ao planejamento familiar e às novas tecnologias sexuais e reprodutivas, como as técnicas de reprodução assistida. Igualmente, aspectos relacionados à faixa etária, raça/etnia, classe, orientação sexual, situação conjugal e outros pertencimentos interseccionados são considerados para reconhecer aquelas pessoas que precisam de mais proteção e cuidado. Em outras palavras, a justiça reprodutiva considera que existem pessoas em situação de maior vulnerabilidade, como adolescentes negras periféricas, especialmente quando gestantes ou em situação de abortamento e que, por isso, demandam cuidados específicos não apenas no campo da saúde, mas também no campo da segurança alimentar, educação, proteção, saneamento básico e outros.

Para difundir essa problemática de forma didática e contribuir com a divulgação científica no campo da bioética, a Coletiva de Bioética Flor de Jacarandá desenvolveu a animação Aborto, justiça reprodutiva e direito ao luto e o infográfico que contribui no aprofundamento do tema. Ambos foram ilustrados por Sabrina Iovine e contaram com Kamyla Matias como designer. Seu público-alvo são profissionais da saúde e estudantes de bioética e o financiamento foi realizado pela Organização Futuro do Cuidado.

Clique aqui para assistir a animação.

O curta-metragem conta a história de Bianca, adolescente que engravidou no ensino médio e sentiu medo frente às dificuldades de criar um filho preto e favelado enquanto estudava e trabalhava. O vídeo inicia com Bianca sofrendo um aborto, sem revelar se
espontâneo ou induzido, tendo em vista que um dos focos do vídeo é a forma de acolhimento e a assistência dos profissionais de saúde para qualquer paciente que passe por esse processo.

Ao longo do vídeo, Bianca faz menção à justiça reprodutiva como um conceito da bioética que diz respeito ao direito de gestar, parir e sofrer perdas com dignidade. A história de Bianca também nos chama à reflexão quanto ao luto perante uma perda gestacional.
Dessa forma, a bioética pautada a partir do conceito de justiça reprodutiva é uma bioética preocupada com a interseccionalidade (CRENSHAW, 2002) uma vez que se propõe a compreender o racismo e sua relação com as opressões históricas fruto do sexismo e do sistema capitalista enquanto determinantes em saúde. Elas estão no centro das discussões bioéticas de modo geral, especialmente quando discutimos os direitos sexuais e reprodutivos a partir do Sul Global. Assim, as opressões históricas interseccionadas não podem ser ignoradas por uma ciência que defende a vida em sua diversidade, motivo pelo qual (re)pensar a justiça – e a bioética – para além do principialismo, é um caminho.

Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Bioética, Ética e Saúde Coletiva, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro – Fiocruz, Uerj, UFF, UFRJ. Atua no campo da educação e comunicação científica e saúde na pesquisa Nascer no Brasil, da Escola Nacional de Saúde Pública, da Fundação Oswald Cruz – ENSP/Fiocruz (2019 -). É licenciada em Filosofia (2009), pela Universidade Federal do Espírito Santo – Ufes.

Referências


ARRUDA, Nivaldo; SANCHES, Mário. Fátima Oliveira:Uma das pioneiras da bioética no Brasil. In: Grandes maestros de la bioética. Revista Iberoamericana de Bioética/ no 16 / 01-06 [2021] [ISSN 2529-9573] DOI:10.14422/rib.i16.y2021.010

CORRÊA, Sonia; KALIL, Isabela. Políticas antigénero en América Latina: Brasil. Observatorio de Sexualidad y Política, 2020

CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Estudos Feministas, ano 10, n. 1/2002, pp. 171-188. Disponível em:
https://www.scielo.br/j/ref/a/mbTpP4SFXPnJZ397j8fSBQQ/?format=pdf&lang=pt. Acesso em: 26 mar. 24.

DINIZ, Debora; GUILHEM, Dirce. O que é bioética. São Paulo: Brasiliense, 2002. 69pp.


DINIZ, Debora; MEDEIROS, Marcelo; MADEIRO, Alberto. National Abortion Survey –Brazil, 2021. Cien Saude Colet [periódico na internet]. mar. 2023. Disponível em:
https://www.scielo.br/j/csc/a/mDCFKkqkyPbXtHXY9qcpMqD/?format=pdf&lang=en.
Acesso em: 26 mar. 24.


GONZAGA, Paula Rita Bacellar; GONÇALVES, Letícia; MAYORGA, Claudia. O conservadorismo distópico à brasileira: direitos sexuais e direitos reprodutivos e a pandemia da covid-19 no Brasil. Revista Feminismos. 2021. Disponível em:

https://www.google.com/url?q=https://repositorio.ufmg.br/bitstream/1843/59502/2/O%2520c
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eitos%2520sexuais%2520e%2520direitos%2520reprodutivos%2520e%2520a%2520pandemi
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Acesso em: 26 mar. 24.


LOPES, Fernanda. Justiça reprodutiva: um caminho para justiça social e equidade racial e de gênero. São Paulo: Organicom, 2022. Disponível em:
https://www.revistas.usp.br/organicom/article/view/205773. Acesso em: 26 mar. 24.


OLIVEIRA, Fatima. Feminismo, luta anti-racista e bioética. Cadernos Pagu, São Paulo, 1995. Disponível em:
https://ieg.ufsc.br/public/storage/articles/October2020/03112009-112524oliveira.pdf. Acesso
em: 26 mar. 24.


SANTOS ARRUDA, N. dos .; SANCHES, M. A. . Fátima Oliveira: Uma das pioneiras da bioética no Brasil . Revista Iberoamericana de Bioética, [S. l.], n. 16, p. 01–06, 2021. DOI: 10.14422/rib.i16.y2021.010. Disponível em:
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SOUZA, Alex Sandro Rolland; AMORIM, Melania Maria Ramos. Mortalidade materna pela COVID-19 no Brasil. Rev. Bras. Saude Mater. Infant., Recife , v. 21, supl. 1, p. 253-256, Feb. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1519-38292021000100253&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 26 mar. 24.

UNESCO. Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos. Brasília: Cátedra Universidade de Brasília (UnB) e Sociedade Brasileira de Bioética (SBB), 2005.

VITORIA, Dayres. Justiça determina retomada de serviço de aborto legal em hospital de São
Paulo. CNN Brasil. 2024 Disponível em:
https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/justica-determina-retomada-de-servico-de-aborto-legal-em-hospital-de-sao-paulo/ Acesso em: 26 mar. 24.

*Co-autoras: Samantha Vitena e Priscila Petra


Imagem gerada por Inteligência Artificial

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