Nota da redação
A Comissão Temática Educação e Bioética da SBB-RJ pretende discutir temas variados de interesse da educação em saúde e as questões éticas que a permeiam. Assim, tanto a educação em bioética para todos os níveis, do ensino fundamental ao profissional e de pós-graduação, quanto a educação profissional na área de saúde como política pública estarão aqui na ordem do dia. Convidamos vocês a participar dessa comissão temática com suas experiências e reflexões com o objetivo de acrescentar pontos de observação e assim, com novas perspectivas ir desenvolvendo o conhecimento. Apresentamos para este número alguma reflexão para iniciarmos o debate acerca da formação médica.
Comissão Temática Educação e Bioética da SBB-RJ
Há alguns meses o Conselho Federal de Medicina (CFM) tem veiculado através das mais variadas mídias sociais, um alerta em defesa da exigência de que todo médico diplomado fora do Brasil seja submetido a um processo de revalidação do seu diploma, em conformidade com a Lei no 13.959/19 .
A ideia de se revalidar diplomas emitidos no exterior não é nova, já que desde o século XIX a então Academia Imperial de Medicina defendia esse procedimento com o argumento de que as doenças existentes no Brasil eram diferentes das existentes na França ou em Portugal.
A ironia (ou cinismo) deste argumento residia no fato de que muitos dos médicos integrantes da Academia tinham se formado no exterior, já que a primeira faculdade de medicina só foi criada após a chegada da família real portuguesa ao Brasil, em 1808, primeiro em Salvador e em seguida no Rio de Janeiro.
Segundo os registros nos Anais da Academia, a grande preocupação era de que se perdesse o controle sobre quem viria a exercer a profissão no Brasil. Mas regulação de quem poderia ou não exercer a profissão nunca foi um problema, já que sempre foi percebida como uma necessidade para o país.
O problema é que este processo de regulação sempre foi delegado às escolas médicas federais existentes no país e, a princípio, não havia uma padronização de como era feita a avaliação de equivalência, que com frequência incluía uma comparação entre os currículos dos cursos no exterior e aqueles oferecidos no Brasil.
Demandava-se, eventualmente, que aquele que pleiteava o reconhecimento de seu diploma frequentasse eventuais disciplinas que estivessem ausentes. Em outras instituições, entretanto, submetia-se o solicitante à prova de residência médica da instituição nacional e a reprovação implicaria a não revalidação do diploma.
Mas até onde se sabe nenhum diplomado no Brasil jamais foi impedido de exercer a profissão por não ter alcançado uma nota mínima em um desses exames de Residência Médica. No entanto, o objetivo já era o de restringir o acesso dos diplomados no exterior à autorização para a prática da medicina no Brasil.
Há alguns anos atrás, eu estava em uma visita a uma Universidade pública e o diretor da faculdade de medicina me convidou a ir até um determinado corredor, que tinha centenas de folhas de papel afixadas nos murais, com nomes listados. Perguntei do que se tratava e fui informado que aquele era o resultado dos pedidos de validação de diploma.
A Faculdade preparou uma prova e, segundo me foi orgulhosamente informado, dos mais de mil inscritos de todo o mundo apenas menos de cem haviam sido aprovados. Impressionado com um resultado tão arrebatador perguntei a ele se os alunos da faculdade dele haviam feito a prova também e qual havia sido o resultado por eles obtido. Ao que o professor, rindo, me respondeu que a prova não era para os alunos da faculdade dele, mas para os de fora. Admitiu, em seguida, que não acreditava que algum aluno seu fosse aprovado, pois a prova buscava a não aprovação dos candidatos.
Relembrei desses fatos pela insistente propaganda em defesa do Revalida feita pelo CFM atualmente e que se fundamenta no argumento de que “garantir a qualidade da assistência médica é essencial!” e que o exame é fundamental para proteger a saúde e a segurança da população, enfatizando não poderem “abrir mão dessa cláusula crucial para a boa assistência, pois remover essa exigência exporia os pacientes a falhas no atendimento”.
A ironia nessa campanha está nas ações do CFM durante a pandemia: defendeu o direito dos médicos de prescreverem remédios que sabidamente não eram eficazes e não questionou e nem contestou os movimentos de profissionais organizados contra a vacinação e outros a favor da introdução da medicação (ineficaz) precocemente. Como pode o CFM, que se identifica como buscando “garantir a qualidade da assistência médica” , ser omisso e não contestar as ações das autoridades (sanitárias) nacionais que se posicionavam contra o que o conhecimento científico então respaldava?
A regulação de todos os que pretendem exercer a profissão médica (ou outra qualquer) no nosso país segue sendo necessária, mas igualmente é necessário que o Conselho exerça sua autoridade em defesa dos interesses da população, protegendo-a dos profissionais que tomam más decisões médicas, sejam eles formados no Brasil ou alhures. O CFM, que tão zelosamente busca proteger os campos e áreas de trabalho que julga ser de exclusiva competência médica, deve igualmente agir zelosamente no esforço de proteger a nossa população de profissionais que se posicionam publicamente contra os consensos (ainda que temporários) da ciência.
Recordo-me agora de outro episódio envolvendo a formação médica em nosso país e que pode ser o relato que encerre o atual questionamento. Há alguns anos fui convidado para dar um curso de curta duração para docentes médicos de uma faculdade. Como faço com frequência em determinado tipo de palestra eu iniciei minha exposição com uma citação direta do filósofo espanhol José Ortega y Gasset em suas “Meditaciones del Quijote”: “Eu sou eu e minhas circunstâncias. Se eu não a salvar, não hei de salvar-me”.
Complementei dizendo ser indispensável para a nossa boa prática profissional que estivéssemos bem conscientes de que não estamos no Memorial Hospital de Nova York, mas em um país com um desenvolvimento capitalista tardio, políticas patrimonialistas e em um contexto social com desigualdades imorais.
Depois de ter proferido essas palavras, um professor-aluno contestou-me: “Discordo, professor”. Perguntei de que parte ele discordava e ele me explicou que, como supervisor das práticas na saúde da família, tinha como obrigação ensinar aos alunos o que existia de mais avançado no conhecimento médico, seja diagnóstico seja terapêutico e prescrever isso aos seus pacientes.
Se depois o paciente ia ter acesso aos exames ou medicamentos, se o SUS ia fornecer, se o plano de saúde ia pagar ou se ele teria dinheiro para pagar, isso não seria problema dele, prescritor, e sim do paciente, do SUS ou do plano de saúde. Não pude não manifestar, na ocasião, meu desalento ao ver que um professor de medicina, com uma função tão estratégica na formação de novos médicos, tivesse uma compreensão tão limitada de seu papel profissional como médico e como cidadão.
Qual a solução? Não sei. As diretrizes curriculares para os cursos de saúde representaram um grande avanço para o pensamento educacional, mas insuficientes. Exame da ordem antes da diplomação, tornando as faculdades ainda mais responsáveis, inclusive financeiramente, pela qualidade da formação? Testes de progresso, como a ABEM tem sugerido?
Não sei, mas estou convencido de que o debate precisa ser ampliado criticamente, sem preconceitos. Temer que isso leve à proliferação de cursinhos para auxiliar os alunos a passarem no “exame de ordem”, como já acontece na preparação para os exames de residência médica, não ajuda a resolver o problema.
- Repensar o papel das faculdades como aquelas que certificam a preparação dos estudantes para o exercício profissional?
- Repensar as competências e habilidades desejáveis para os graduandos e tão bem redigidas nas Diretrizes Curriculares Nacionais?
- O que será que todo recém-formado deve ser capaz de fazer?
- Como avaliar a aquisição dessas competências e habilidades?
Em suma, a discussão do ‘Revalida’ encobre uma questão que certamente é mais importante: como avaliar a qualidade da formação profissional médica independentemente da origem da formação profissional?
Junte-se à discussão!
Avalie a Importância do Revalida para a Qualidade Médica no Brasil e Participe do Debate sobre Saúde Pública em nossa seção de comentários!
Sergio Rego, possui graduação em Medicina pela UNIRIO (1982), mestrado (1994) e doutorado em Saúde Coletiva pela UERJ (2001). É pesquisador titular da ENSP/Fiocruz, do Núcleo Interdisciplinar em Emergências em Saúde Pública do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz e docente no Programa de Pós-graduação em Bioética, Ética Aplicada e Saúde Coletiva na Fiocruz. Membro da Comissão de Integridade em Pesquisa da Fiocruz. Coordenador do GT de Bioética da Abrasco. Líder da Unidade do Rio de Janeiro da International Chair in Bioethics (centro colaborador da Associação Médica Mundial).
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