Há cerca de nove anos atrás foi divulgado um post na rede redddit.com que por um desses fenômenos da internet despertou a atenção de jornalistas brasileiros no dia 08 de março de 2024, sendo divulgado em múltiplos sites1 23 . Em resumo, a história refere-se a um casal estadunidense cuja filha, de nove anos, foi diagnosticada com transtorno do espectro autista severo, com um comportamento antissocial intenso, que impede que o casal viva sem transtornos e com oportunidade para terem também sua própria vida social.
A história tem contornos que assustam, mas alguns detalhes ajudam a ter mais dúvidas em relação a uma reação tão extrema dos pais: a criança frequenta uma escola por seis horas diariamente. Teoricamente isso daria aos pais um tempo para se dedicarem ao trabalho e, eventualmente, ao lazer, mas não pretendo aqui avaliar as possíveis razões e consequências deste quadro tão preocupante.
O que quero ressaltar aqui é um detalhe óbvio: esses pais não têm o apoio que aparentemente precisam para conduzir esse relacionamento de forma menos traumática. No caso até aqui mencionado trata-se de uma criança com TEA, mas quero introduzir dois temas que demonstram o isolamento que as famílias vivem com minorias para as quais não existem políticas públicas minimamente satisfatórias, e não apenas no Brasil.
São os casos das pessoas com as chamadas “doenças raras”, assim chamadas por afetarem apenas 65 indivíduos a cada 100 mil pessoas. O tratamento que vem se desenvolvendo é caríssimo e pode ser classificado genericamente como quase individual, pois se baseia em características genéticas e a oferta pública desses medicamentos é extremamente restrita, especialmente pelo custo das drogas como pelas medidas necessárias no caso de internações. Estima-se que no Brasil existam cerca de treze milhões de pessoas que se enquadram nesse diagnóstico, embora esse número venha se repetindo nas divulgações ao menos desde 2019.
Esse quadro social demanda uma política pública que enquadre o cuidado oferecido e um esforço especial para que os valores dos medicamentos não sejam tão exorbitantes. Acordos entre Estados e Indústrias? Incentivo às pesquisas com recursos públicos? Quebra de patentes? Fevereiro é o mês dedicado a destacar para a sociedade os problemas de acesso ao proclame constitucional (“Saúde é um direito de todos e um dever do Estado) para esse segmento populacional.
Mas há outro seleto grupo populacional que também não tem seus direitos à saúde respeitados com políticas efetivas: trata-se das pessoas com deficiência. Esse grupo, eufemisticamente denominado como “especiais”, “com necessidades especiais”, ou “deficientes”, não são de fato especiais ou com necessidades especiais. São indivíduos que precisam se locomover, se alimentar, estudar como quaisquer outros. As suas “necessidades” não são voar, ler pensamentos, comunicar-se telepaticamente ou coisas semelhantes. Essas denominações são, por si só, formas de discriminação.
Mas há um subgrupo ainda mais invisível para a sociedade, e assim mais facilmente ignorado: as pessoas com múltiplas deficiências. As dificuldades são inúmeras, começando por tentar saber quantos indivíduos com múltiplas deficiências existem no país. Segundo o IBGE, 18,6 milhões de pessoas com mais de 2 anos possuíam ao menos uma deficiência. Mas e as múltiplas deficiências, o que seriam?
A deficiência múltipla é a associação, na mesma pessoa, de duas ou mais deficiências primárias (visual, auditiva, física, intelectual, psicossocial), com comprometimentos que acarretam atrasos no desenvolvimento global e na capacidade de adaptação. Quantos são? Ninguém parece saber, até porque a definição de pessoas com deficiência tem como limite etário os dois anos de vida e as principais causas de múltiplas deficiências estão no período neo e perinatal e na primeira infância: fatores pré-natais, perinatais ou natais e pós-natais, além de situações ambientais tais como: acidentes e traumatismos cranianos, intoxicação química, irradiações, tumores e outras.
Para esse segmento populacional, as dificuldades são ainda maiores: as clínicas e ONGs especializadas em apoiar e cuidar de pessoas com deficiências raramente aceitam pessoas com múltiplas deficiências entre os que serão por eles cuidados. Instituição para educação de surdos recusa indivíduos com deficiência intelectual. Instituições dedicadas ao cuidado dos chamados “especiais” não aceitam surdos ou cegos, por exemplo.
Recentemente tivemos em nosso país a epidemia causada pelo Zika Vírus e a inesperada elevação dos casos de microcefalia associados ao nascimento de crianças cujas mães tiveram zika durante a gravidez. São crianças que, já ao nascerem, qualquer profissional de saúde bem formado poderia antever um futuro com múltiplas deficiências para elas. E as respostas políticas que nosso país foi capaz de formular e implementar?
Benefícios de auxílio financeiro que são irrisórios, promessa de atendimento especializado e o abandono. Essas crianças estão aí, sobrevivendo com o esforço e dedicação de suas mães, com ajudas pontuais e nenhuma política de longo prazo que ajude a cuidar delas, de seu desenvolvimento e proteção das famílias que se veem sozinhas nessas horas.
Quantas instituições públicas existem, no âmbito do SUS, que acolham essas crianças em esquemas como hospital-dia? Quantas tem o seu direito a educação protegido por ações públicas, sejam federais, estaduais ou municipais? Não dá para saber quantas acolhem as crianças e adultos com múltiplas deficiências, mas dá para saber que eles são considerados como semi-cidadãos, seres invisíveis até que um ou outro pai entre em desespero e torne o problema público, para horror dos cidadãos de bem, como fez o casal estadunidense mencionado no início deste texto.
Saúde para todos, contra a discriminação!
Sergio Rego, possui graduação em Medicina pela UNIRIO (1982), mestrado (1994) e doutorado em Saúde Coletiva pela UERJ (2001). É pesquisador titular da ENSP/Fiocruz, do Núcleo Interdisciplinar em Emergências em Saúde Pública do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz e docente no Programa de Pós-graduação em Bioética, Ética Aplicada e Saúde Coletiva na Fiocruz. Membro da Comissão de Integridade em Pesquisa da Fiocruz. Coordenador do GT de Bioética da Abrasco. Líder da Unidade do Rio de Janeiro da International Chair in Bioethics (centro colaborador da Associação Médica Mundial).
- https://noticias.r7.com/ric/pais-divulgam-desejo-de-colocar-filha-com-autismo-para-adocao-nao-amamos-um-relato-angustiante-08032024 [↩]
- https://spdiario.com.br/noticias/mundo/pais-querem-colocar-filha-com-autismo-para-adocao-nao-e-ninguem-pra-mim.html [↩]
- https://www.metropoles.com/vida-e-estilo/pais-querem-colocar-filha-com-autismo-para-adocao-nao-a-amamos [↩]